Ser Gagá
Millôr Fernandes
Ser Gagá é ficar pensando o dia inteiro em como seria
bom ter trinta anos ou, vá lá, quarenta, ou mesmo, ó Deus, sessenta! É ficar
olhando os brotinhos que passeiam, com o olhar esclerosado, numa inútil
esperança. É ficar aposentado o dia inteiro, olhando no vazio, pensando em
morrer logo, e sair subitamente, andando a meia hora que o separa dos cem
metros da esquina, porque é preciso resistir. É dobrar o jornal encabulado,
quando chega alguém jovem da família, mas ficar olhando, de soslaio, para os
íntimos da coluna funerária. Ser Gagá é saber todos os mortos inscritos no Time,
em Milestones. Não é saber o Who is who, mas os WHEN.
É só pensar em comer, como na infância. E em certo dia passar fome as vinte e
quatro horas, só de melancolia. É, na hora mais ativa do mais veloz Bang-Bang,
descobrir, lá no terceiro plano, uni ator antigo, do cinema mudo, e sentir no
peito a punhalada. É surpreender, subitamente, um olhar irônico que trocam dois
brotinhos, que, no entanto, o ouvem seriamente. É querer aderir à bossa nova,
falar “Sossega Leão” e morrer de vergonha ao perceber o fora. É não querer, não
querer, mas cada dia ficar mais necessitado de amparo do que outrora. É ter
estado em Paris, em 19. É descobrir, de repente, um buraco na roupa e dar
graças a Deus, por ser na roupa.
Ser Gagá é sentir plenamente que tudo que se leu,
que se aprendeu, que se viu e se viveu não vale nada diante do que estua. Ser
Gagá é estar sempre na iminência de ouvir em plena rua: “Olha o tarado!” É
ficar contente em ver Chaplin e Picasso como os “mais charmosos” de sessenta! É
chamar de menina à quarentona. É ter uma esperança senil nos cientistas. É
reparar, nos mais jovens, o imperceptível sinal de decadência. É ficar olhando
o detalhe, nos amigos; a lentigem nas mãos, o cabelo que afina, a pele que vai
desidratando. Ser Gagá é o orgulho vão de ainda ter cabelo e poucos brancos! A
vaidade tola de não ter barriga; a felicidade de ter dentes próprios. E fazer
grandes planos qüinqüenais que espantam os jovens que acham cinco anos a
própria eternidade, mas que o Gagá sabe que voam como voaram tantos, tantos,
tantos.
É se apegar, desesperadamente, pelo tremendo
impulso da existência, aos filhos, aos netos e aos bisnetos, embora saiba que
eles não o querem, que a convivência com eles é apenas parte e total do egoísmo
vital que o enterra. É sentir que agora, outra vez, está bem de saúde. É sentir
a saúde ocasional. É carregar o corpo o tempo todo. É sentir o caixão no
próprio corpo. É saber que já não há quem tenha prazer em lhe acarinhar a pele.
É já não ter prazer em passar a mão na própria pele. É esquecer de coisas
importantes e lembrar, sem saber por que, um gosto, um calor, uma palavra há
tempos esquecidos.
Ser Gagá é procurar com afã a importância do cargo
para de novo ser solicitado, embora pelo cargo. É sentir que nada do que faça,
espantoso que seja, terá a importância do feito de outro homem, nos inícios da
vida. Ser Gagá é quando dormir tarde se torna uma loucura, resgatada em feroz
resfriado que dura uma semana. É ter sabido francês, e esquecido. É já não
jogar xadrez como outrora! É olhar o retrato amarelado e lembrar que fotógrafo
usava magnésio. É dizer, como um feito, que ainda lê sem óculos. É ouvir que
alguém diz, quando passa na rua: “inda está firme!” É ficar galante e baboseiro
na terceira taça de champanha. É casar com uma mulher mais jovem e querer dar
logo ao mundo a inegável prova de um filhinho.
Ser Gagá é, num esforço mortal, aceitar tudo que
inventam, todas as idéias, as modas, a música, o ritmo de vida, mas não deixar
de dizer numa ironia profunda e amargurada. “Eu não entendo”. É sentir de
repente o isolamento. É ficar egoísta, e amedrontado. É não ter vez e nem
misericórdia.
Ser Gagá é fogo. Ou melhor, é muito frio.
Lembrando
Millôr Fernandes, face a seu falecimento em 27 de março de 2012.
Texto extraído do livro “As Cem Melhores Crônicas Brasileiras”, editado pela Editora Objetiva, Rio de Janeiro - 2007, pág. 226.
Texto extraído do livro “As Cem Melhores Crônicas Brasileiras”, editado pela Editora Objetiva, Rio de Janeiro - 2007, pág. 226.
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