terça-feira,
14 de Setembro de 2010
(Pepetela)
Cheia no Rio Douro,
23 de Dezembro de 1909
SÔ
BELARMINO MOREIRA nasceu na cidade do Porto, cidade que ele nunca nomeava pela
designação oficial, mas pela carinhosa de «Invicta». O feliz acontecimento que
o trouxe ao mundo aconteceu em 1918, num dia que culminava uma semana inteira
de chuva ininterrupta, na Península Ibérica e arredores. Por isso o rio
ameaçava galgar todos os muros e obstáculos que ao longo da Ribeira as pessoas
tinham acumulado à força de braços e também dos músculos dos mulos, para evitar
a inundação. Trabalho insano e praticamente inútil, pois no momento em que a
mãe o empurrou para a vida ao ar livre, Belarmino escapou às mãos cansadas da
parteira e mergulhou pela primeira vez na água do Douro, que por essa altura já
subia a vinte centímetros no chão da casa. Por isso o seu primeiro nome não foi
Belarmino, como o conheceremos mais tarde, mas «Molhado», como lhe chamaram
sempre na cidade natal. O pai, vagamente adepto da Maçonaria e declaradamente
anticlerical, arranjou no facto pretexto para não permitir que fosse baptizado,
já lhe chegava de águas, coitadinho, que mal saiu do calorzinho aconchegante do
ventre materno logo mergulhou no Douro castanho e gelado.
Muito
mais tarde falaria sempre a brincar do seu primeiro nome de Molhado. Mas
descrevia com supersticiosa reserva, já muito a sério, a primeira visão que
teve de uma outra cheia do Douro, aos quatro anos de idade. A visão que para
sempre o marcou foi a do cadáver de um homem a passar no rio que corria,
inchado, à frente da sua casa. Sempre associou as cheias do Douro a esse
instante de mudo terror. E registou, com notável precisão, o infortúnio
desmedido de se passar silenciosamente à frente de uma cidade, sem um caixão
que resguardasse a face morta e pálida dos curiosos olhares dos outros.
Quando
o Molhado tinha cinco anos, o pai partiu para Angola, tentar a sorte. E quatro
depois, seguiu a família, ele, a mãe, e três irmãos. Para trás ficou
definitivamente o Douro e suas cheias. E quando lhe perguntavam na escola de
Luanda de onde tinha vindo ele respondia sempre da Invicta, pois claro. Viveu
no alto da Boavista, num sítio onde havia poucas casas e piores estradas,
sobretudo quando chovia. Deste sítio do outro lado do mundo também via água ao
sair de casa. Só que esta era do mar e contida numa calma e belíssima baía azul
com coqueiros e palmeiras à volta. Se apaixonou, pela diferença de cores e
nunca mais quis mudar de sítio. E, por morar na Boavista de Luanda, se tornou
adepto ferrenho do clube de futebol Boavista, do mesmo nome mas do Porto.
Pepetela
Do
seu livro Contos de Morte. Caxinde, 2008
Escritor
angolano, Pepetela é um dos nomes mais relevantes da literatura
contemporânea de língua portuguesa. Em 1997 foi galardoado com o Prémio Camões,
considerado o mais importante prémio literário para autores de língua
portuguesa.
Pepetela,
de nome próprio Artur Pestana, nasceu em Angola, na província litoral de
Benguela, aos 29 de Outubro de 1941. Descendente de uma família colonial, os
seus pais eram, no entanto, já nascidos em Angola.
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