O burguês e o crime
Carlos Heitor Cony
O burguês
Foi
durante a noite que, de repente, ele se fez a pergunta:
— Por
que não?
A
pergunta finalizava a série de pensamentos que haviam começado horas antes,
quando estava no teatro. Fora com a mulher assistir a uma peça de sucesso, com
artistas de sucesso, estréia recente e também de sucesso. As duas primeiras
noites haviam sido dedicadas à alta sociedade, às classes produtoras, ao Corpo
Diplomático, às autoridades constituídas e a penetras de diferentes origens e
feitios. Na altura da terceira apresentação, ele chegara em casa e a mulher o
intimara:
— É o
fim, Figueiredo! Todo mundo já viu a peça, menos nós. Tem de ser hoje.
Uma
semana depois, a peça seria suspensa por falta de público, mas naquela terceira
noite ele teve de se acotovelar na entrada, discutir com os bilheteiros e
terminar sendo explorado por um cambista que lhe vendeu duas péssimas poltronas
com ágio pesado e imerecido.
Suportou,
lá dentro — e estoicamente — os primeiros momentos da peça, mas ainda em meio
ao primeiro ato desanimou de procurar entender o que se passava no palco. Era
um drama complicado e palavroso, uma jovem que tinha neurose e amantes, um
analista, uma enfermeira lésbica e, presidindo a tudo, um pai severo e
asmático. Em suma: um conflito acima de suas possibilidades e de seu interesse.
Quando
ia ao cinema, sempre podia dormir quando o filme seguia um rumo surpreendente
assim. No escuro o cochilo ficava impune, a mulher nem suspeitava. À saída, ele
concordava com a opinião da mulher e conseguiam chegar em casa sãos e salvos.
Mas no teatro era difícil o cochilo. Havia luz, e pior que a luz, havia sempre
a iminência de algo espantoso, o cenário despencar, a roupa da atriz cair, um
ator ter enfarte ou esquecer o texto, um fósforo botar fogo no pano de boca.
Tais e tantos atrativos impediam-no de dormir, mas propiciavam discreta
dormência, o pensamento solicitado ora pelo calor, ora pela peça, ora ainda
pelo pigarro de um velho na platéia, ou pelo sapato um pouco apertado que Ema —
a mulher — o obrigara a usar.
Tivera
um dia calmo, calmos eram todos os seus dias. A firma, apesar do sócio que era
uma toupeira, prosperava. Saúde boa, perspectivas boas. Não tinha motivos para
pensar no futuro ou no passado. Sobravam-lhe motivos para dormir no presente, a
peça já era um motivo.
A
frase, dita por alguém no palco, chamou-o de volta. Ele já contara as pregas do
lado direito da cortina que compunha o fundo do cenário, e preparava-se,
resignado, pra contar as pregas do lado esquerdo, quando ouviu alguém falar em
morte.
Não,
não ameaçavam ninguém de morte. O drama do palco era existencial, não continha
mortes nem ameaças de. Fora uma frase convencional, assim como "não
devemos matar a velha de susto", ou "se a velha souber disso pode
morrer".
Matar
ou morrer? Não chegava a ser uma opção, nem no palco, nem em sua vida, mas uma
série de pensamentos que tinham, ora a sua lógica, ora o seu absurdo, e em
ambos os casos, a sua conveniência. Evidente, não pensava nunca em sua própria
morte, mas sabia que havia gente que morria e gente que matava. Os que morriam
eram os doentes, os suicidas, os atropelados, os assassinos, os passageiros de
avião ou da Central do Brasil. Os que matavam eram os criminosos, os ladrões
noturnos, os tiranos, os motoristas de ônibus.
Não era
agradável pensar em morrer. Logo retirou este elemento de sua opção e ficou
apenas com o matar.
Matar o
quê? Matar para quê? Na peça, falavam em matar uma velha de susto. Ele não
tinha velha nenhuma à vista. A mãe já morrera, as parentas de velhice mais
agressiva também já haviam morrido. Havia a sogra, ainda, mas não chegava a ser
uma velha, e, além do mais, era uma excelente pessoa.
Se não
adiantava matar uma velha, matar o quê?
Matar
por matar, amor à arte, eis a questão. Matar para experimentar os nervos, ou
para provar a si mesmo do que era capaz. Sim, isso justificava um crime. Mas
para provar do que era capaz, não bastaria matar — isso qualquer idiota poderia
fazer. Tinha de matar e permanecer impune — para poder se olhar no espelho e se
sentir redimido, confiante: sou um caráter!
Foi
então que surgiu o problema — que seria, nos próximos dias, o seu problema, o
único problema realmente sério de sua vida — como obter o crime perfeito? Matar
o porteiro de seu edifício, por exemplo, nunca seria um crime perfeito. Mais
cedo ou mais tarde a polícia apertaria os moradores do prédio e ele acabaria
confessando. Para matar impunemente teria de escolher um comerciário de Brás de
Pina, uma funcionária subalterna que voltasse, tarde da noite, para o Leblon.
Mas
seria estúpido matar sem motivo, embora matasse perfeitamente. O crime
perfeito, sem lucro pessoal, não lhe interessava, aliás, pensando bem, agora
que o primeiro ato terminava, nenhum crime lhe interessava.
Teve
coragem para o comentário.
— Uma
peça muito profunda!
A
mulher não concordou nem discordou. Apenas disse:
— Vamos
esperar pelo resto. Acho que vai sair um escândalo!
Foi a
vez de ele concordar, embora não suspeitasse que tipo de escândalo estava
prestes a estourar. Saiu para o hall circulou entre estranhos, bebeu um gole
d'água gelada, sem sede mesmo, só para passar o tempo.
Durante
o segundo ato os pensamentos seguiram outro rumo. Surgiu no palco um pastor
protestante. Surgiu também um militar reformado que era mudo — e ele começou a
pensar em como seria sua vida — e como seria ele mesmo — se não tivesse voz.
Chegou
à conclusão e ao fim da peça: poderia manter o mesmo padrão de vida se, por
acaso, ficasse sem voz. Era-lhe coisa inútil, espécie de adorno. Para ganhar
dinheiro e dormir com a mulher — a voz era dispensável, uma responsabilidade
incômoda.
Ao
saírem, cumprimentou com a cabeça alguns conhecidos e fez a viagem de volta
imaginando-se mudo. Conseguiu chegar em casa sem ter pronunciado uma só palavra
— o que não era uma vantagem especial, sempre que iam ou que voltavam de algum
lugar, a mulher é quem falava, ele apenas ouvia.
A
grande oportunidade para testar a sua disciplina interior foi ao guardar o
carro na garagem. Todas as vezes tinha de pedir à mulher que suspendesse o
vidro da porta:
—
Suspenda o seu vidro, Ema.
Àquela
noite, engoliu em seco e esperou que a mulher saísse para, então inclinar-se no
banco, com algum esforço para sua espinha, já bombardeado por sedimentações calcárias
que prenunciavam um respeitável bico-de-papagaio, e rodar a manivelinha até
fechar o vidro.
Na
cama, preparado para dormir, a palavra primeiramente, e o conceito depois,
retornaram à sua cabeça e às suas preocupações: matar. Há muito não tinha
insônia. A firma prosperava, vendia material de escritório aos ministérios
militares, era pago em dia, e não faltavam encomendas, tanto Marinha como o
Exército e a Aeronáutica — felizmente para ele e para Pátria — gastavam mais em
papel timbrado do que em pólvora.
Geralmente,
caía duro em cima da cama. De quinze em quinze dias ou de vinte em vinte dias,
procurava a mulher para um amor apressado e quase sempre incompleto da parte
dela.
Quando
percebeu as horas, viu que gastara a noite toda pensando. Tinha disciplina
interior feroz e eficiente. Se dormisse até as 9, estaria salvo. Virou para o
lado e antes de escorregar definitivamente no sono, teve um pensamento também
definitivo:
—
"Se não fosse a polícia, eu matava!"
O crime
A
firma era próspera e prosperava, apesar do sócio: um belo homem excelente
caráter, pai amantíssimo, esposo exemplar, amigo irreprochável foi o mínimo que
um orador, à beira do túmulo, disse dele, no dia do enterro: "Colhidos
pela brutalidade de tua morte, aqui estamos, Anselmo, para prantearmos o
excelente caráter, o pai amantíssimo, o esposo exemplar, o amigo irreprochável
que acabamos de perder!".
No
mesmo cemitério, à beira de outro túmulo, e mais ou menos mesma hora, Ema foi
sepultada e chorada quase que solitariamente: quatro coveiros a sepultaram, com
suas correntes e más vontades, e o marido chorou, apesar de tudo, segundo
afirmaram alguns poucos presentes que ouviram os soluços de um enterro e o
discurso do outro.
À
noite, apareceram-lhe em casa alguns amigos compenetrados. Conforme afirmaram
mais tarde, foram à casa dele unicamente para que Figueiredo "não fizesse
uma besteira".
Apesar
da presença dos amigos, Figueiredo conteve-se e não cometeu besteira nenhuma.
Tomou apenas um porre, como lhe convinha, e disse obscenidades a respeito da
vida e de si mesmo, chamando a vida de merda e chamando-se a si mesmo de corno.
O que ia de encontro aos pensamentos gerais, embora os amigos protestassem,
deixa disso, Figueiredo, deixa disso!
No
dia seguinte ao do enterro, apareceu mal vestido e barbado para iniciar as
providências legais das sucessões, pois sucedia ao sócio no controle da firma e
sucedia à mulher nos bens do casal que eram muitos, o sogro lhe havia deixado
apólices e casas em Vila Isabel.
Estava
rico e livre agora da chatice do sócio e da chatice da mulher. E para ficar
livre dos amigos, começou a cultivar mau hálito, o que impedia que os mais
importunos se acercassem dele para dar conselhos, principalmente quando, após o
escândalo da dupla morte, revelou-se o outro escândalo, o da fortuna que lhe
chegava às mãos através de tão rudes eventos.
Rosnavam
que, se não fossem as trágicas e patentes circunstâncias, a polícia deveria investigar
melhor aquilo tudo. Mas a suspeita não tinha consistência — apesar do ódio que
Figueiredo passou a provocar pela fortuna, pelo mau hálito, e pela liberdade
que lhe chegara à vida. Ele mesmo, com o tempo, começou a esquecer, a duvidar
do passado, e um dia, vendo no fundo do armário uma peça íntima de Ema,
suspirou e sentiu saudades. Logo se aprumou, afugentou o pensamento macabro que
lhe surgiu, e embora não houvesse ninguém à volta, disse em voz alta, como
convinha a um homem que sofrera tanto:
—
"Aquela cachorra!"
Porém
já cinco anos eram passados da morte da cachorra e do cachorro. Cinco anos
daquela tragédia que enlutou a família cristã, rudemente golpeada pelo
escândalo daquele pacto de morte. Cronistas sem assunto escreveram sobre o
pacto de morte tão romanticamente previsto e executado, foram ouvidas opiniões
de sociólogos, de pedagogos e de sacerdotes sobre o caso. Cinco dias depois já
ninguém falava no assunto e cinco anos depois, só mesmo ele, e às vezes,
pensava em tudo, detalhadamente, como num passo heróico de sua vida.
Chegara
àquela noite em casa, de uma viagem rápida a São Paulo, e baqueara ao entrar em
seu quarto: caídos e nus, em cima da cama, a sua mulher e o sócio. Próximo do
sócio, o copo partido, cujos resíduos foram examinados pelo Instituto de
Criminalística e cuja malignidade foi devidamente provada.
A
perícia, com a ajuda dele, reconstituiu os acontecimentos. Ele viajara a São
Paulo, voltaria na noite seguinte. Tão logo se mandou pela estrada, Ema chamara
o amante. A perícia examinou a vagina de Ema e encontrou sinais evidentes do
coito recente. O imperscrutável aconteceu — e aqui o relatório policial foi
respeitoso, ao afirmar que, "após manterem relações de fundo sexual, os
dois amantes decidiram pôr fim à vida através de um pacto de morte que foi
imediatamente cumprido".
Anselmo
preparou o veneno, Ema bebeu estoicamente, sem repugnância pela morte ou pelo
gosto de amêndoas que saía do copo. E Anselmo, logo em seguida, ingeriu o
restante. Contorceram-se pouco, e logo se imobilizaram — e foi assim que, à
noite, Figueiredo e mais tarde a polícia os encontraram.
No
18° Distrito Policial o pacto de morte foi classificado como "Ocorrência
nº. 53.697" e arquivado após despacho
do delegado--auxiliar, cumpridas as formalidades
legais e pagas as taxas do costume.
O crime e o burguês
—
"Se não fosse a polícia eu matava!".
Com
essa frase ele adormecera, uma semana antes da tragédia que abalou a sociedade
cristã e a sua vida. Viera do teatro e ficara pensando em matar, mas não sabia
nem como, nem a quem matar. Não tinha nenhum problema importante na vida, tudo
lhe ia bem, e essa inexistência de um problema dava-lhe a sensação de burrice,
de imprestabilidade.
Desde
que pensara em matar, sentiu que iniciava uma nova vida, fugia à rotina, à qual
sempre se submetera. Era o seu problema, embora não fosse, ainda, a sua
vontade. No trabalho, em casa, andando pelas ruas, tinha agora uma ordem fixa
de pensamentos e de energias.
Certa
tarde, regressando da cidade, parou no Flamengo. Entrou num prédio, tomou o
elevador, fechou os olhos e apertou um botão: qualquer andar em que o elevador
parasse, serviria. Parou no sétimo andar. Havia duas portas à frente, apertou a
campainha do 701. A velhinha veio abrir e ele quase chegou ao crime: levou as
duas mãos para a frente em direção ao gasganete da velha. Mas deu-lhe uma
tremedeira nas pernas e ele recuou. O elevador ficara parado no andar e ele
pôde fugir. Poderia ter deixado a velha morta, ninguém teria visto nada. Mas
deixou a velha apenas surpreendida e irritada.
Passou
uma noite de cão, reprovando-se a covardia. Tivera tudo à mão, a velha, o
elevador, não esbarrara com ninguém, nunca entrara naquele prédio. A polícia
procuraria pelos parentes da velha, os desafetos, os fornecedores, as
ex-empregadas, os vizinhos. Não tivera ao alcance das mãos apenas o gasganete
da velha: tivera nas mãos o crime perfeito — e o desperdiçara, sem lucro algum.
E então
tremeu, emocionado e surpreso: acabara de descobrir o crime verdadeiramente
perfeito: O LUCRO. Matar sem lucro, como no caso da velha, seria uma
brincadeira idiota. Tinha de matar com muito lucro, com tanto lucro que ficasse
óbvia a lucrabilidade do crime. E para tornar patente essa lucrabilidade, tinha
de escolher uma vítima que fosse patentemente próxima de seus interesses. Viu a
mulher dormindo a seu lado.
—
"Se mato esta mulher — a minha mulher — o primeiro e necessário suspeito
serei eu mesmo".
Riu,
com a facilidade do problema. Tão fácil era o problema que resolveu exagerar.
Não mataria apenas uma pessoa, mas duas. E, na escala de importância e de
lucro, a segunda pessoa que lhe apareceu foi o sócio, o qual hipotecara, há
tempos, a parte dele, para levar a mulher aos Estados Unidos, curar um tumor no
colo do útero. Ele emprestara o dinheiro e ficara com as hipotecas do sócio. Se
matasse o sócio, a firma ficaria inteiramente em suas mãos, era um lucro
evidente, agressivo.
Dois
dias depois, avisou à mulher que ia a São Paulo, viagem rápida. Saiu à noite,
subiu em direção a Teresópolis. Deixou o carro numa rua que lhe pareceu
deserta, tomou um ônibus e antes da meia-noite estava novamente em casa. Entrou
pela garagem, como o fazia todas as noites, mas sem o carro, e por causa disso,
não teve necessidade de acordar o garagista.
Surpreendeu
a esposa:
— Uê?
Você já voltou?
— Você
está vendo.
Explicou
que o carro enguiçara no quilômetro 97 da Rio — São Paulo, tomara um ônibus,
amanhã voltaria ao local, com um mecânico. Foram dormir e ele procurou a
mulher. Dessa vez, pela primeira vez em muitos anos, concentrou-se no esforço
de fazê-la gozar — era parte do plano. Depois que ela estremeceu e gritou
coisas indecentes — sinal que finalmente gozara — ele conseguiu, também, um
escasso prazer. Mas logo levou a mão ao peito:
— Ema,
o enfarte!
Caiu
para o lado, olhos arregalados, bufando grosso. Ema deu um pulo da cama, nua.
— Vou buscar
a coramina!
— Não!
Chame o Anselmo, preciso falar com ele, é urgente, mas diga a ele para não
contar a ninguém, para vir já! As hipotecas dele! Ele pode perder tudo!
Ema foi
ao telefone, acordou Anselmo:
— O
Figueiredo teve um enfarte. Venha correndo, mas não diga nada a ninguém. As
hipotecas!
A
mulher de Anselmo perguntou quem chamava o marido dela àquela hora da noite,
mas Anselmo, apesar de esposo exemplar e pai amantíssimo, deu um grito:
— Vá à
merda, mulher. Depois eu explico!
Ema foi
à cozinha, apanhou um copo d'água. Quando voltou ao quarto, pingando gotas de
coramina no copo, encontrou o marido em pé, com um copo na mão.
— Uê?
Já ficou bom?
Figueiredo
avançou para ela.
— Beba
isso!
—
Mas...
— Beba,
sua idiota!
Era a
primeira vez, em dezenove anos de casados, que se dava o nome ao boi naquela
casa. Ema apanhou o copo, sentiu um cheiro estranho. Bebeu um gole e ainda teve
tempo de perguntar:
— Para
que é isso?
— É um
afrodisíaco. Faz a gente gozar mais ainda.
Mas Ema
não ouviu que ia gozar mais ainda. Caiu próximo à cama e Figueiredo arrumou-a o
melhor que pôde. Mais alguns minutos, foi à porta da frente, esperar pelo
sócio. Viu o elevador subir, a luzinha crescendo, crescendo. Anselmo saiu do elevador
e deu com ele na porta.
— E o
enfarte?
— Entre
depressa!
Anselmo
não gostou. A mulher dele ia falar o resto da vida contra aquela saída abrupta,
misteriosa, ia ser o diabo explicar.
—
Brincadeira tem hora! Cadê o enfarte?
Figueiredo
estendeu-lhe o copo.
— Prove
essa droga! Veja que gosto tem e se concorda comigo.
Anselmo
provou, sentiu um gosto adocicado de amêndoas, mas não teve tempo de concordar.
Figueiredo arrastou-o ao quarto, tirou-lhe a roupa, deitou-o ao lado de Ema, a
mão estendida para fora do leito. Pegou no copo, colocou-o na mão de Anselmo,
deixou que o copo se partisse no chão.
Apagou
as luzes, deixando apenas um pequeno abajur aceso. Ganhou a rua, atravessando a
garagem do prédio, o garagista tinha sono de pedra, quando chegava tarde, com o
carro, tinha de esmurrar a campainha para que o homem lhe abrisse a porta dos
carros.
Andou
pela cidade, esperando o primeiro ônibus para Teresópolis. Deixara impressões
no copo, nas roupas, em todos os lugares. Mas o lucro era tão dele que
invalidava a suspeita. Deixara atrás de si um crime que se explicava por si
mesmo.
Tomou o
ônibus para Teresópolis. Com o sereno da noite, o carro ficara melado como um
bicho. Antes de ligar o motor, abriu o painel de instrumentos e desligou o cabo
do velocímetro. Desceu a serra, almoçou um frango assado à beira da estrada,
atingiu a Avenida Brasil e cortou em direção oposta à cidade. Andou mais alguns
quilômetros e pegou a Rio — São Paulo. Enfrentou as retas iniciais, atingiu a
serra mas logo fez um contorno e embicou de volta ao Rio. Parou no posto de gasolina
para abastecer o carro.
— Tem
mecânico aí?
O
mulato de maus dentes surgiu das entranhas de uma camioneta.
— É o
cabo do velocímetro. Acho que houve alguma coisa com ele.
Deu boa
gorjeta ao mecânico e ao homem do posto que lhe enchera o tanque, tinha agora
duas pessoas que atestariam que ele regressava de São Paulo.
Quando
arrancou, os dois homens o chamaram de doutor:
— Boa
viagem, doutor!
Chegou
em casa, após uma boa viagem, e viu o quadro que logo os policiais examinaram,
os jornais noticiaram e com o qual ele lucrou.
Moral
O crime, para o burguês, só não compensa quando a polícia está
contra.
O texto acima foi publicado no livro "Babilônia,
Babilônia", Ed. Civilização Brasileira — Rio de Janeiro, 1978, e está
entre "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", uma
seleção de Ítalo Moriconi para a Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 270.
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