MANUEL LOPES
(1907-2005)
Manuel
Antonio dos Santos Lopes nasceu na Ilha de São Vicente, Cabo Verde, em 1907.
Funcionário aposentado da Western Telegraph. Poeta, romancista, contista e
conferencista. Elemento de proa do movimento Claridade.
Publicou:
Poemas de quem ficou (Açores, 1949); Chuba Braba, novelas (Lisboa, 1956); O
galo cantou na baía (uma novela e quatro contos; Lisboa, 1959); Os flagelados
do vento leste (romance; Lisboa, 1959); Crioul.o e outros poemas (Lisboa,
1964).
A GARRAFA
Que importa o
caminho
da garrafa que
atirei ao mar?
Que importa o gesto
que a colheu?
Que importa a mão
que a tocou
— se foi a criança
ou o ladrão
ou filósofo
quem libertou a sua
mensagem
e a leu para si ou
para os outros.
Que se destrua
contra os recifes
eu role no areal
infindável
ou volte às minhas
mãos
na mesma praia erma
donde a lancei
ou jamais seja
vista por olhos humanos
que importa?
... se só de
atirá-la às ondas vagabundas
libertei meu
destino
da sua prisão?...
Extraídos de
BARBOSA, Rogério
Andrade. No ritmo dos tantãs; antologia poética dos países africanos de língua
portuguesa; Brasília: Thesaurus, 1991. 165 p.
Página publicada em
maio de 2008, com a autorização da Thesaurus.
OUTROS POEMAS
CAIS
Nunca parti deste
cais
e tenho o mundo na
mão!
Para mim nunca é
demais
responder sim
cinquenta vezes a
cada não.
Por cada barco que
me negou
cinquenta partem
por mim
e o mar é plano e o
céu azul sempre que vou!
Mundo pequeno para
quem ficou...
SONETO À LIBERDADE
Primeiro tu virás,
depois a tarde
com terras, mares,
algas, vento, peixes.
trarás, no ventre,
a marca das idades
e a inquietude dos
pássaros libertos.
virás para o enorme
do silêncio
— flor boiando na
órbita das águas —
tu não verás o
fúnebre das horas
nem o canto final
do sol poente.
primeiro tu virás,
depois a tarde
sem desejos e amor.
virás sozinha
como o nome
saudade. virás única.
eu não terei a
posse do teu corpo
nem me batizarei na
tua essência,
mas tu virás
primeiro e eu morro livre.
POSTAL
deste lado da ilha
o cais e a cidade
velha
datam de muito
tempo,
mas a cidade é um
poema
não cresceu. é
sempre a mesma.
todos os dias
igual:
o mesmo outeiro da
cruz
desterro, fontes e
fortes
igrejas, lendas,
sobrados
estreitas ruas,
mirantes
portões, sacadas de
ferro
poetas, becos,
telhados
serestas,
maledicência
saveiros, pregões
de rua
cantaria,
mal-amados
rios (chão, templo
e canteiros)
de peixe e
palafitados)
ladeiras, moças
bonitas
recato e amor nas
janelas
casarões
azulejados.
cidade em traje a
rigor
vestida à colonial
meu mundo, meu
porta-jóias
meu bem, meu cartão
postal.
brisa de maré
vazante
sem similar no
país.
quietude pousada na
água
caminhos feitos de
história.
gente vem ver São
Luís!
A PALAVRA
te lavo e lavro
palavra / pão
polida pedra
de construção
do quanto faço
deste edifício
em que elaboro
fé e ofício,
te esculpo e bruno
verbo/canção
no diário labor
de artesão.
te louvo lume
e pedra d'ara
com que ergo o
templo
da flor mais cara
e clara: poesia
com que reparto
os sóis do meu dia
o suor do meu dia
o fel do meu dia
as mazelas do homem
as amargas vidas
o pão subtraído
as pagas devidas
a paz relativa
a justiça rara
a fome de todos
a morte na cara
da criança. o aço
que o corpo nos
cava,
a fé o cansaço
desta luta brava
a fartura a poucos
de muitos tomada
o chão proibido
a água negada
o amor que rareia e
a festa sonhada
.....................................
palavra larva
semente pura
que em mim explodes
de sons madura,
te lavo e lavro
verbo / canção
te louvo lume
poema / pão
manhã sonhada
meu sim/meu não.
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