Caso
do Vestido
Carlos
Drummond de Andrade
Texto extraído do livro “Nova Reunião – 19 Livros de Poesia”, José Olympio Editora – 1985, pág. 157.
Nossa mãe, o que é aquele
Vestido, naquele
prego?
Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.
de uma dona que passou.
Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?
Era nossa conhecida?
Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.
Vosso pai evém chegando.
Nossa mãe dizei depressa
que vestido é esse vestido.
Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.
O vestido, nesse prego,
Está morto, sossegado.
Nossa mãe, esse vestido
Tanta renda, esse segredo!
Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.
Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.
E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós,
se
afastou de toda vida,
se
fechou, se devorou,
chorou
no prato de carne,
bebeu,
brigou, me bateu,
me
deixou com vosso berço,
foi
para a dona de longe,
mas
a dona não ligou.
Em
vão o pai implorou.
Dava
apólice, fazenda,
dava
carro, dava ouro,
beberia
seu sobejo,
lamberia
seu sapato.
Mas
a dona nem ligou.
Então
vosso pai, irado,
me
pediu que lhe pedisse,
a
essa dona tão perversa,
que
tivesse paciência
e
fosse dormir com ele…
Nossa
mãe, por que chorais?
Nosso
lenço vos cedemos.
Minhas
filhas, vosso pai
chega
ao pátio. Disfarcemos.
Nossa
mãe, não escutamos
pisar
de pé no degrau.
Minhas
filhas, procurei
aquela
mulher do demo.
E
lhe roguei que aplacasse
de
meu marido a vontade.
Eu
não amo teu marido,
me
falou ela se rindo.
Mas
posso ficar com ele
se
a senhora fizer gosto,
só
pra lhe satisfazer,
não
por mim, não quero homem.
Olhei
para vosso pai,
os
olhos dele pediam.
Olhei
para a dona ruim,
os
olhos dela gozavam.
O
seu vestido de renda,
de
colo mui devassado,
mais
mostrava que escondia
as
partes da pecadora.
Eu
fiz meu pelo-sinal,
me
curvei… disse que sim.
Sai
pensando na morte,
mas
a morte não chegava.
Andei
pelas cinco ruas,
passei
ponte, passei rio,
visitei
vossos parentes,
não
comia, não falava,
tive
uma febre terçã,
mas
a morte não chegava.
Fiquei
fora de perigo,
fiquei
de cabeça branca,
perdi
meus dentes, meus olhos,
costurei,
lavei, fiz doce,
minhas
mãos se escalavraram,
meus
anéis se dispersaram,
minha
corrente de ouro
pagou
conta de farmácia.
Vosso
pais sumiu no mundo.
O
mundo é grande e pequeno.
Um
dia a dona soberba
me
aparece já sem nada,
pobre,
desfeita, mofina,
com
sua trouxa na mão.
Dona,
me disse baixinho,
não
te dou vosso marido,
que
não sei onde ele anda.
Mas
te dou este vestido,
última
peça de luxo
que
guardei como lembrança
daquele
dia de cobra,
da
maior humilhação.
Eu
não tinha amor por ele,
ao
depois amor pegou.
Mas
então ele enjoado
confessou
que só gostava
de
mim como eu era dantes.
Me
joguei a suas plantas,
fiz
toda sorte de dengo,
no
chão rocei minha cara,
me
puxei pelos cabelos,
me
lancei na correnteza,
me
cortei de canivete,
me
atirei no sumidouro,
bebi
fel e gasolina,
rezei
duzentas novenas,
dona,
de nada valeu:
vosso
marido sumiu.
Aqui
trago minha roupa
que
recorda meu malfeito
de
ofender dona casada
pisando
no seu orgulho.
Recebei
esse vestido
e
me dai vosso perdão.
Olhei
para a cara dela,
quede
os olhos cintilantes?
Quedê graça de sorriso,
quedê colo de camélia?
Quedê aquela cinturinha
delgada
como jeitosa?
Quedê pezinhos calçados
com
sandálias de cetim?
Olhei
muito para ela,
boca
não disse palavra.
Peguei
o vestido, pus
nesse
prego da parede.
Ela se foi
de mansinho
e já na
ponta da estrada
vosso
pai aparecia.
Olhou
pra mim em silêncio,
mal
reparou no vestido
e
disse apenas: — Mulher,
põe
mais um prato na mesa.
Eu
fiz, ele se assentou,
comeu,
limpou o suor,
era
sempre o mesmo homem,
comia
meio de lado
e
nem estava mais velho.
O
barulho da comida
na
boca, me acalentava,
me
dava uma grande paz,
um
sentimento esquisito
de
que tudo foi um sonho,
vestido
não há… nem nada.
Minhas
filhas, eis que ouço
vosso
pai subindo a escada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário