O caso do espelho
Conto popular
recontado por Ricardo Azevedo, ilustrado por Alarcão
Era
um homem que não sabia quase nada. Morava longe, numa casinha de sapé esquecida
nos cafundós da mata.
Um
dia, precisando ir à cidade, passou em frente a uma loja e viu um espelho
pendurado do lado de fora. O homem abriu a boca. Apertou os olhos. Depois
gritou, com o espelho nas mãos:
- Mas
o que é que o retrato de meu pai está fazendo aqui?
-
Isso é um espelho - explicou o dono da loja.
- Não
sei se é espelho ou se não é, só sei que é o retrato do meu pai.
Os
olhos do homem ficaram molhados.
- O
senhor... conheceu meu pai? - perguntou ele ao comerciante.
O
dono da loja sorriu. Explicou de novo. Aquilo era só um espelho comum, desses
de vidro e moldura de madeira.
- É
não! - respondeu o outro. - Isso é o retrato do meu pai. É ele, sim! Olha o
rosto dele. Olha a testa. E o cabelo? E o nariz? E aquele sorriso meio sem
jeito?
O
homem quis saber o preço. O comerciante sacudiu os ombros e vendeu o espelho,
baratinho
Naquele
dia, o homem que não sabia quase nada entrou em casa todo contente. Guardou,
cuidadoso, o espelho embrulhado na gaveta da penteadeira.
A
mulher ficou só olhando.
No
outro dia, esperou o marido sair para trabalhar e correu para o quarto. Abrindo
a gaveta da penteadeira, desembrulhou o espelho, olhou e deu um passo atrás.
Fez o sinal da cruz tapando a boca com as mãos. Em seguida, guardou o espelho
na gaveta e saiu chorando.
- Ah,
meu Deus! - gritava ela desnorteada. - É o retrato de outra mulher! Meu marido
não gosta mais de mim! A outra é linda demais! Que olhos bonitos! Que cabeleira
solta! Que pele macia! A diaba é mil vezes mais bonita e mais moça do que eu!
-
Quando o homem voltou, no fim do dia, achou a casa toda desarrumada. A mulher,
chorando sentada no chão, não tinha feito nem a comida.
- Que
foi isso, mulher?
- Ah,
seu traidor de uma figa! Quem é aquela jararaca lá no retrato?
- Que
retrato? - perguntou o marido, surpreso.
-
Aquele mesmo que você escondeu na gaveta da penteadeira!
O
homem não estava entendendo nada.
- Mas
aquilo é o retrato do meu pai! Indignada, a mulher colocou as mãos no peito:
-
Cachorro sem-vergonha, miserável! Pensa que eu não sei a diferença entre um
velho lazarento e uma jabiraca safada e horrorosa?
A
discussão fervia feito água na chaleira.
- Velho
lazarento coisa nenhuma! - gritou o homem, ofendido.
A mãe
da moça morava perto, escutou a gritaria e veio ver o que estava acontecendo.
Encontrou a filha chorando feito criança que se perdeu e não consegue mais
voltar pra casa.
- Que
é isso, menina?
-
Aquele cafajeste arranjou outra!
- Ela
ficou maluca - berrou o homem, de cara amarrada.
-
Ontem eu vi ele escondendo um pacote na gaveta lá do quarto, mãe! Hoje, depois
que ele saiu, fui ver o que era. Tá lá! É o retrato de outra mulher!
A boa
senhora resolveu, ela mesma, verificar o tal retrato.
Entrando
no quarto, abriu a gaveta, desembrulhou o pacote e espiou. Arregalou os olhos.
Olhou de novo. Soltou uma sonora gargalhada.
- Só
se for o retrato da bisavó dele! A tal fulana é a coisa mais enrugada, feia,
velha, cacarenta, murcha, arruinada, desengonçada, capenga, careca, caduca,
torta e desdentada que eu já vi até hoje!
E
completou, feliz, abraçando a filha:
-
Fica tranqüila. A bruaca do retrato já está com os dois pés na cova!
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