quinta-feira, 28 de julho de 2016

ARTUR AZEVEDO - UMA APOSTA

UMA APOSTA

 ARTUR AZEVEDO

Se o Simplício Gomes não fosse um rapaz do nosso tempo, se não usasse calças brancas, paletó de alpaca, chapéu de palha e guarda-chuva, daria ideia de um desses quebra-lanças que só se encontram nos romances de cavalaria. De outro qualquer diríamos: “Ele gostava da Dudu”; tratando-se, porém, do Simplício Gomes, empregaremos esta expressão menos familiar: “Ele amava Edviges.”
O seu amor tinha, realmente, alguma coisa de puro e de ideal, que não se compadecia com os costumes de hoje.
Começava por ser discreto; Dudu adivinhou, ou antes, percebeu que era amada, mas ele nunca lho disse, nunca se atreveu a dizer-lhe, não por timidez ou respeito, mas simplesmente porque não tinha confiança no seu merecimento.
Estava bem empregado, poderia casar-se e viver modestamente em família, mas era tão feio, tão pequenino, tão insignificante e ela tão linda e tão esbelta, que o casamento lhe parecia desproporcionado.
Ele não se sentia digno dela, não acreditava que a pudesse fazer feliz, e isso o desgostava profundamente. Ela, por seu lado, não concorria para que a situação se modificasse: fingia ignorar que ele a amava, e atribuía toda aquela solicitude a um afeto desinteressado.
Dudu vivia com a mãe, uma pobre viúva sem outro recurso que não fosse o do meio soldo e montepio deixados pelo marido, brioso oficial do Exército que viveu sempre desprotegido, porque não sabia lisonjear nem pedir; mas o Simplício Gomes, sem fumaças de protetor, e dando a esmola com ares de quem a recebia, achava meios e modos de fazer com que naquela casa faltasse apenas o supérfluo.
Como era parente, embora afastado, das duas senhoras, estas consideravam os seus favores simples atenções de família.
O caso é que o Simplício Gomes parecia adivinhar os menores desejos de Dudu e nessas ocasiões recorria ao ardil de uma aposta:
– Aposto que hoje chove!
– Que idéia! o dia está bonito!
– Pois sim, mas o calor é excessivo: temos água com toda certeza!
– Não temos!
– Façamos uma aposta!
– Valeu! se chover eu perco uma caixa de charutos.
– E eu aquela blusa que você viu na vitrina da Notre Dame e cobiçou tanto.
– Quem lhe disse que cobicei?
– Ora, esses olhos não me enganam…
No dia seguinte Dudu recebia a blusa.
A velha costumava dizer com muita ingenuidade:
– Você faz mal em apostar, Simplício! E muito caipora, perde sempre, e então, em se tratando de mudança de tempo, é uma lástima!
Conquanto não se atrevesse a falar em casamento, o pobre rapaz sofria, oprimido pela idéia de que quando menos se pensasse, Dudu teria um namorado… um noivo… um marido e efetivamente, não se passou muito tempo que os seus receios não se realizassem.
Dudu impressionou-se por um cavalheiro muito bem trajado, que começou a rondar-lhe a porta quase todos os dias, cumprimentando-a, depois sorrindo-lhe, e finalmente escrevendo-lhe graças à cumplicidade de um molecote da casa.
Depois de receber três cartas, Dudu contestou, convenceu-se de que as intenções do namorado eram as melhores e mostrou a correspondência à mãe, que imediatamente consultou o Simplício Gomes sem saber o desgosto que lhe causava. Este, que já havia notado as idas e vindas do transeunte suspeito, disfarçou o mais que pôde, os seus sentimentos, limitando-se a dizer que Dudu não deveria casar-se com aquele homem sem ter primeiramente certeza de que ele a amava deveras.
A velha, com toda a sua simplicidade, pediu-lhe que se informasse da idoneidade do pretendente, e o mísero logo se transformou de quebra-lanças em quebra-esquinas.
Foram desanimadoras (para ele) as informações que obteve: o rival chamava-se Bandeira, era de boa família, de bons costumes, funcionário público de certa categoria, estimado, e tinha alguma coisa. O seu único defeito era ser um pouco genioso.
O Simplício, que não tinha o altruísmo heróico de Cirano de Bergerac, não avolumou as qualidades do outro, mas foi leal: não as diminuiu. Em suma: o Bandeira pediu a mão de Dudu; e começou a freqüentar a casa.
O coitado não articulou uma queixa, mas começou desde logo a emagrecer a olhos vistos; perdeu o apetite, ficou macambúzio, fúnebre… Dudu, que tudo compreendeu, teve muita pena, teve quase remorsos; mas a velha nem mesmo assim desconfiou que a filha fosse adorada pelo infeliz parente.
Entretanto, o Simplício Gomes começou a ser assíduo em casa de Dudu; o seu desejo oculto era não deixá-la sozinha com o tal Bandeira enquanto não se casassem.
O noivo tinha, efetivamente, boas qualidades, mas era não só genioso, mas de uma arrogância, de uma empáfia, de um autoritarismo que começaram a inquietar Dudu.
Uma bela tarde em que se achavam ambos sentados no canapé, e o Simplício Gomes, afastado, num canto da sala, folheava um álbum de retratos, o Bandeira levantou-se dizendo:
– Vou-me embora; tenho ainda que dar umas voltas antes da noite.
– Ora, ainda é cedo; fique mais um instantinho, replicou Dudu, sem se levantar do canapé.
– Já lhe disse que tenho que fazer! Peço-lhe que vá desde já se habituando a não contrariar as minhas vontades! Olhe que depois de casado, hei de sair quantas vezes quiser sem dar satisfações a ninguém!
– Bom; não precisa zangar-se…
– Não me zango, mas contrario-me! Não me escravizei; quero casar-me com a senhora, mas não perder a liberdade!
– Faz bem. Adeus. Até quando?
– Até amanhã ou depois.
O Bandeira apertou a mão de Dudu, despediu-se com um gesto do Simplício Gomes, e saiu batendo passos enérgicos, de dono de casa.
Dudu ficou sentada no canapé, olhando para o chão.
O Simplício Gomes aproximou-se de mansinho, e sentou-se ao seu lado.
Ficaram dez minutos sem dizer nada um ao outro.
Afinal Dudu rompeu o silêncio. Olhou para o céu iluminado por um crepúsculo esplêndido, e murmurou:
– Vamos ter chuva.
– Não diga isso, Dudu: o tempo está seguro!
– Apostemos!
– Pois apostemos! Eu perco uma coisa bonita para o seu enxoval de noiva. E você?
– Eu… perco-me a mim mesma, porque quero ser tua mulher!
E Dudu caiu, chorando, nos braços de Simplício Gomes.

(O Século, 9 de julho de 1907. In Histórias Brejeiras, 1962.)

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