NOSSOS DIAS MELHORES NUNCA VIRÃO?
Arnaldo Jabour
Ando em crise, numa boa, nada de grave.
Mas, ando em crise com o tempo. Que estranho "presente" é este que
vivemos hoje, correndo sempre por nada, como se o tempo tivesse ficado mais
rápido do que a vida, como se nossos músculos, ossos e sangue estivessem
correndo atrás de um tempo mais rápido.
As utopias liberais do século 20 diziam que teríamos mais ócio, mais paz com a tecnologia. Acontece que a tecnologia não está aí para distribuir sossego, mas para incrementar competição e produtividade, não só das empresas, mas a produtividade dos humanos, dos corpos. Tudo sugere velocidade, urgência, nossa vida está sempre aquém de alguma tarefa. A tecnologia nos enfiou uma lógica produtiva de fábricas, fábricas vivas, chips, pílulas para tudo.
Funcionar é preciso; viver não é preciso. Por que tudo tão rápido? Para chegar aonde?, para gozar sem parar? Mas gozar como? Nossa vida é uma ejaculação precoce. Estamos todos gozando sem fruição, um gozo sem prazer, quantitativo. Antes, tínhamos passado e futuro; agora, tudo é um "enorme presente", na expressão de Norman Mailer. E este "enorme presente" nos faz boiar num tempo parado, mas incessante, num futuro que "não pára de não chegar". Antes, tínhamos os velhos filmes em preto-e-branco, fora de foco, as fotos amareladas, que nos davam a sensação de que o passado era precário e o futuro seria luminoso. Nada. Nunca estaremos no futuro. E, sem o sentido da passagem dos dias, de começo e fim, ficamos também sem presente. Estamos cada vez mais em trânsito, como carros, somos celulares, somos circuitos sem pausa, e cada vez mais nossa identidade vai sendo programada. O tempo é uma invenção da produção. Não há tempo para os bichos. Se quisermos manhã, dia e noite, temos de ir morar no mato.
Há alguns anos, eu vi um documentário
chamado Tigrero, do cineasta finlandês Mika Kaurismaki e do Jim Jarmusch sobre
um filme que o Samuel Fuller ia fazer no Brasil, em 1951. Ele veio, na época, e
filmou uma aldeia de índios no interior do Mato Grosso. A produção não rolou e,
em 92, Samuel Fuller, já com 83 anos, voltou à aldeia e exibiu para os índios o
material colorido de 50 anos atrás. E também registrou, hoje, os índios vendo
seu passado na tela. Eles nunca tinham visto um filme e o resultado é das
coisas mais lindas e assustadoras que já vi.
Eu vi os índios descobrindo o tempo. Eles
se viam crianças, viam seus mortos, ainda vivos e dançando. Seus rostos viam um
milagre. A partir desse momento, eles passaram a ter passado e futuro. Foram
incluídos num decorrer, num "devir" que não havia. Hoje, esses índios
estão em trânsito entre algo que foram e algo que nunca serão. O tempo foi uma
doença que passamos para eles, como a gripe. E pior: as imagens de 50 anos é
que pareciam mostrar o "presente" verdadeiro deles. Eram mais
naturais, mais selvagens, mais puros naquela época. Agora, de calção e
sandália, pareciam estar numa espécie de "passado" daquele presente.
Algo decaiu, piorou, algo involuiu neles.
Lembrando disso, outro dia, fui atrás de
velhos filmes de 8mm que meu pai rodou há 50 anos também. Queria ver o meu
passado, ver se havia ali alguma chave que explicasse meu presente hoje, que
denunciasse algo que perdi, ou que o Brasil perdeu... Em meio às imagens
trêmulas, riscadas, fora de foco, vi a precariedade de minha pobre família de
classe média, tentando exibir uma felicidade familiar que até existia, mas
precária, constrangida; e eu ali, menino comprido feito um bambu no vento, já
denotando a insegurança que até hoje me alarma. Minha crise de identidade já
estava traçada. E não eram imagens de um passado bom que decaiu, como entre os
índios.
Era um presente atrasado, aquém de si
mesmo. A mesma impressão tive ao ver o filme famoso de Orson Welles, It's All
True, em que ele mostra o carnaval carioca de 1942 - únicas imagens em cores do
País nessa década. Pois bem, dava para ver, nos corpinhos dançantes do carnaval
sem som, uma medíocre animação carioca, com pobres baianinhas em tímidos
meneios, galãs fraquinhos imitando Clark Gable, uma falta de saúde no ar, uma
fragilidade indefesa e ignorante daquele povinho iludido pelos burocratas da
capital. Dava para ver ali que, como no filme de minha família, estavam aquém
do presente deles, que já faltava muito naquele passado.
Vendo filmes americanos dos anos 40, não
sentimos falta de nada. Com suas geladeiras brancas e telefones pretos, tudo já
funcionava como hoje. O "hoje" deles é apenas uma decorrência
contínua daqueles anos. Mudaram as formas, o corte das roupas, mas eles, no
passado, estavam à altura de sua época. A Depressão econômica tinha passado,
como um grande trauma, e não aparecia como o nosso subdesenvolvimento endêmico.
Para os americanos, o passado estava de acordo com sua época. Em 42, éramos
carentes de alguma coisa que não percebíamos. Olhando nosso passado é que vemos
como somos atrasados no presente. Nos filmes brasileiros antigos, parece que
todos morreram sem conhecer seus melhores dias.
E nós, hoje, nesta infernal transição entre
o atraso e uma modernização que não chega nunca? Quando o Brasil vai crescer?
Quando cairão afinal os "juros" da vida? Chego a ter inveja das
multidões pobres do Islã: aboliram o tempo e vivem na eternidade de seu atraso.
Aqui, sem futuro, vivemos nessa ansiedade individualista medíocre, nesse narcisismo
brega que nos assola na moda, no amor, no sexo, nessa fome de aparecer para
existir. Nosso atraso cria a utopia de que, um dia, chegaremos a algo
definitivo. Mas, ser subdesenvolvido não é "não ter futuro"; é nunca
estar no presente.
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