Conto de Clarice Lispector
21 de Maio de 2015
Os dois mais murmuravam que conversavam:
havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o
que vem junto: ciúme.
– Está bem, acredito que sou a sua primeira
namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca
beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:
– Sim, já beijei antes uma mulher.
– Quem era ela? perguntou com dor.
Ele tentou contar toscamente, não sabia
como dizer.
O ônibus da excursão subia lentamente a
serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa
fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e
sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas
sentir – era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia
dos companheiros.
E mesmo a sede começara: brincar com a
turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar,
sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva,
e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engulia-a lentamente, outra
vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede
enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol
do meio dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda
mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um
pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O
jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era
de anos.
Não sabia como e por que mas agora se
sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam
para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos,
espreitando, farejando.
O instinto animal dentro dele não errara:
na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava… o chafariz de onde
brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede mas
ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.
De olhos fechados entreabriu os lábios e
colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco
desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta
encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os
olhos.
Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois
olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da
boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole
sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.
E soube então que havia colado sua boca na
boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma
boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência,
sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o
líquido germinador da vida… Olhou a estátua nua.
Ele a havia beijado.
Sofreu um tremor que não se via por fora e
que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto
em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que
fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes
relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha
acontecido.
Estava de pé, docemente agressivo, sozinho
no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se
transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com
sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
Até que, vinda da profundeza de seu ser,
jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo
também de um orgulho antes jamais sentido: ele…
Ele se tornara homem.
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