domingo, 23 de
janeiro de 2011
Com um humor cáustico e ácido,
Nelson Rodrigues[1] nos apresentou a figura emblemática
do Cretino Fundamental. Seria quase uma redundância e uma covardia procurar
avançar nesse emblema social, que se tornou um marco para a compreensão do
indivíduo atual, com muita perspicácia, apesar de não podermos deixar de
considerar, de alguma forma, a trajetória política de Nelson Rodrigues, mas
reconhecer seu tirocínio no que tange à produção de tipos sociais muito bem
marcados e envoltos por uma aura acachapante. Mas este é o motivo, ou, o mote
pelo qual poderei elaborar uma reflexão ampliando essa questão do cretino
social para o que podemos considerar a preservação de um discurso que tem como
objetivo reproduzir a estrutura do capital no desdobramento da mercadoria.
Haverá
qualquer motivo que nos leve a considerar que o homem moderno se realizou
plenamente? Terá este indivíduo alcançado seus projetos humanos no que tange às
suas próprias perspectivas? Terá realizado seus sonhos humanos mais profundos?
Quanto ao que lhe cabe no mundo ocupado pela lógica social da mercadoria, seria
este indivíduo emancipado em sua condição social? Sua suposta alienação seria
apenas motivo de crítica por parte dos que se opõem ao capitalismo, de sorte
que não passaria de um nicho de
intelectuais anacrônicos em um mundo prático, submerso no paraíso das coisas e
objetos que compõem a felicidade imediata dos homens e das mulheres atuais? Em
última instância, a que se deve o mal-estar que se apossa do meu pensamento e
faz com que eu atribua um juízo sobre este indivíduo que está precisamente
voltado para um mundo ensimesmado?
Diríamos,
sem qualquer risco de incorrermos em erro, que o homem moderno vive o seu mais profundo e
histórico retrocesso, ou, em vista das grandes promessas que lhe foram
atribuídas, estaria este sujeito moderno em vias de um colapso psicossocial. De
um modo muito peculiar, a alienação e o imediato das relações são o cotidiano
santificado dos seres humanos, o que parece ser apenas um dado para ser
colocado à prova, é para o sujeito comum, aturdido com sua alienação, algo pelo
qual não deve prevalecer qualquer crítica. Por mais que haja uma crítica
imperiosa ao que muitos enxergam como o império da individualidade, o indivíduo
moderno foi alijado de sua própria capacidade de cumprir seu destino, está
apartado de sua individualidade e obedece a uma espécie de estrutura invisível
que o condiciona, dando-nos a impressão de que é ele um idiota na forma grega
de sua acepção. Porém, ao observar com mais acuidade e paciência, podemos
encontrar nesse sujeito um comportamento que obedece a uma determinação que é,
em princípio, coletiva, pois cada qual converge, mesmo com seu modo
exclusivista e excludente, a uma formação social que se tornou um eixo para
todos se sentirem pertencentes ao sistema.
II
Este
destino, atado às
determinações e os modos pelos quais a mercadoria se expressa no interior do
comportamento mais rasteiro do homem, não mais se vê apartado das probabilidades
do próprio sistema capitalista, ao contrário, quanto mais a sociedade
capitalista se totaliza como um conjunto que abrange a linguagem dos indivíduos
sociais, sua sintaxe, sua religião, sua família e suas instituições, mais se
torna ele mesmo (o indivíduo) parte integrante – a tautologia social que
suprime todas as probabilidades de reflexão crítica, sucumbindo a um senso
comum, transformado em dogma perene de
toda sociedade.
A atitude patrimonialista do
indivíduo abur- guesado pela noção de preservação de sua herança, desen- volvendo
para isto uma sociedade segura, cuja virtude estava na disciplina, no trabalho
e no acúmulo, o trabalho era o grande valor que se encaixava perfeitamente nas
condições existências desse indivíduo moderno. Estou aqui a me referir a um
determinado modo de vida que começou especialmente num período em que o mundo
conheceu o capitalismo pujante da indústria. Por isto “Esse desejo era de fato
uma matéria-prima bastante conveniente para que fossem construídos os tipos de
estratégias de vida e padrões comportamentais indispensáveis par atender à era
do “tamanho é poder” e do “grande é lindo”: uma era de fábricas e exércitos de
massa, de regras obrigatórias e conformidade às mesmas”[2]. Isto não quer dizer que este indivíduo
historicamente construído a partir de uma visão de austeridade espartana e
favor de um acúmulo para o bem das glórias humanas e divinas, que cumpria com
uma forma de comportamento cuja base era a exploração do trabalho na forma mais
acabada e, portanto, mais abstrata e alienada que a história pôde presenciar,
seja, de algum modo, um exemplo de homem ou de indivíduo a ser seguido. É a
partir dessa base psicossocial que houve as condições estruturais para um salto
de qualidade que nos trouxe para este novo indivíduo, moderno, contemporâneo
homem, atomizado, fragmentado, idiotizado, que sucumbiu a toda forma de
exigência da mercadoria.
Este
indivíduo, masculinizado pelas estruturas de produção e pela ideologia dos
sistemas que fluem para se tornarem a expressão de uma metacultural,
atualmente, a colonização da mercadoria em toda face da Terra, formalmente
instituído pelo poder a ele mesmo aferido, foi levado gradativamente a abdicar
da crítica em favor da cotidianidade, havendo então um ocultamento dos
verdadeiros sentidos da exploração e do fetiche social. Sua transformação em um
conteúdo imaginário, trazido para a realidade das imagens que se misturam às re-
lações de cada dia, e que poderiam nos oferecer, mínima- mente, um estudo
fenomenológico dessas relações, trazem um universo que nos coloca diante de um
imenso vazio existencial. Quero com isto dizer que a alienação não pode ser
apenas entendida como um dado historicamente aglutinado pelas forças de
produção, mas, temos de considerar que a alienação se desdobrou diale- ticamente,
de um modelo que arranca do indivíduo de sua própria condição inicial, de sua
totalidade, de uma possível potencialidade de suas próprias forças para, logo
em seguida, se tornar um ser conduzido por elementos alheios à sua vida, por
isso, a indivi -dualidade foi extirpada da vida humana. Dessa forma, é lícito
dizer que “Em relação ao primeiro estádio da evolução histórica da alienação,
que se pode caracterizar como uma degradação do “ser” em “ter”, o espetáculo
consiste numa degradação ulterior do “ter” em “parecer””[3].
No
mundo das imagens em movimento, no mundo das imagens em virtualidade, temos a
imagem que se constrói do homem comum, e de seu senso, isto é, o pensamento que
ele tem de si mesmo, não passa de uma imagem. Mas esta imagem não existe solta,
a pairar pela consciência, como uma mônada existencial. Não se trata disto,
pois o caso é que esta imagem, ou as imagens que são construídas atuam diretamente
sobre a vida dos indivíduos e também sobre suas relações a partir de uma
realidade palpável. De que realidade falamos? Daquela cujo único sujeito de
fato aparece, ou, dito de outro modo, o verdadeiro sujeito histórico
contempo- râneo é a produção de valor capitalista e, por conseguinte, a sua
expressão reveladora, mistificadora em determinado aspecto dessas relações, a
saber, a mercadoria. É a partir e por meio desta coisa, a forma mercadoria, que
a imagem do mundo se distorce, o ser humano, obrigado a viver sob a égide das
relações engendradas pela mercadoria, é colocado numa teia, cujo primeiro
estágio é a alienação, e daí por diante,
submete-se a um processo de inversões absurdas. Diremos que a necessidade de
adquirir mercadorias faz com que não apenas o comportamento para a sua
aquisição no mercado, bem como todas as formas de ação e estratégia no
trabalho, nas hierarquias, nas decisões e na execução de qualquer coisa, além
de todas as relações implicadas no modo de vida relacional, estejam
absolutamente conformadas a uma lógica que implica obedecer a uma imagem.
De
que imagem falamos? Da imagem projetada como modelo de todas as outras imagens
sociais, de todas as imagens-objeto, de todas as imagens materiais ou
espirituais, quer dizer, com isto, que tudo converge para um algo que se
metamorfoseia em metalin -guagem, em meta-cultura, a mercadoria.
Ainda
ficamos com o discurso restrito e reducionista de que a mercadoria é apenas um
elemento a mais no processo de alienação, como se fosse o indivíduo o
verdadeiro responsável pela sua alienação. No entanto, aqui é preciso fazer uma
objeção a essa noção de senso comum, porque ambiguamente o homem-indivíduo
teria poder sobre as mercadorias, no entanto, é ele dominado por uma
forma-mercadoria que abrange todas as formas menores, e não se trata, como
muitos ingenuamente atribuem, a impulsos, desejos, paixões, esquizofrenias
estruturais, etc. É evidente que tudo faz parte do universo doentio do
indivíduo atual, mas a mercadoria nos mostra a servidão com que o indivíduo se
apresenta ante ela mesma, até porque “Os indivíduos servidos pelo capitalismo
acabam sendo, ao final, seus servidores inconscientes. Eles não são apenas
mimados, distraídos, alimentados e corrompidos”[4].
A
alma dos negócios humanos está voltada especialmente para atender necessidades
de um algo que não se manifesta totalmente e por isso mesmo, tem-se a impressão
de que não existe de fato, que não passa de uma interpretação.
Neste
momento em que o mundo está diante de um cataclisma social, perguntamos, de
qualquer modo, se foi melhor que o sistema tenha falhado e mostrado suas
fissuras. Se o capitalismo tivesse alcançado seu objetivo e não tivesse falhado
em qualquer circuns- tância, seria o fim para este indivíduo. A sorte para todos
nós é que nenhum sistema permanece como está e, por outro lado, histori- camente
a consciência parece permanecer atada ao sistema, mesmo que viva a sua
decadência em todos os seus aspectos. Por isso, a crítica a o cretino fundamental
tem um limite histórico, re- presenta, por um lado, a substancial revolta para
com um modo de vida que atingiu as relações humanas, desumanizando-as e, de
outro, repre- senta um grito de esperança, já que é possível compartilhar novas
visões de mundo, nas quais esse indivíduo supere e encontre a emancipação, mas
não sem levar em conta a sua condição de alienação total que hora o faz
mergulhar e reproduzir as estruturas sociais do capitalismo.
E não
é por outro motivo na insistência de que a mercadoria assumiu a centralidade do
mundo, levando o indivíduo a uma projeção invertida de si, posicionando sua
imagem nas relações humanas, assim determinadas pelo poder hierárquico.
III
Uma virtude, dentre tantas outras,
parece ter dado força a este homem atual, a objetividade e a praticidade para
viver nos meandros da sociedade da mercadoria, estabelecendo suas estratégias
sociais que se tornaram, por outro lado, estratégias psicológicas bem
delineadas e sobretudo aplaudidas por consultores, administradores, gestores e
psicólogos do trabalho. Esse indivíduo deve consolidar suas estratégias a fim
de se conformar o mundo das relações que o levam à sua própria preservação,
assim “Ele reage continuamente ao que percebe sobre si, não só consciente- mente
mas com o seu ser inteiro, imitando os traços e atitudes de todas as
coletividades que o rodeiam (...) forçam um conformismo mais estrito, uma
entrega mais radical à completa assimilação, do que qualquer pai ou professor
poderia impor no século XIX”[5]. Obedece de um modo a preservar suas
próprias posições, e o que parece ser mais interessante, na verdade, quase um
verdadeiro milagre, é este conformismo biológico, instantâneo, que não
prescinde de uma educação formal, a estrutura social jê por si engendra essa
edu- cação.
Tem-se
a impressão de que o grande personagem impessoal de Nelson Rodrigues vingou
na história, o cretino fundamen- tal parece ter conquistado seu lugar
no mundo capitalista, mesmo que para isto foi preciso criá-lo a fórceps.
Paradoxal é a postura desse cretino, que imagina ter o poder sobre o mundo e,
de outro lado, não se apercebe das engrenagens que o trituram diariamente e
isto se revela no fato de que “o capital domina a consciência e, por
conseguinte, o comportamento das pessoas, e finalmente o valor de troca em seus
bolsos mediante a empatia do servir; portanto, o poder visto como mero servidor
torna-se realmente dominante”. (p. 80, Crítica da estética da mercadoria) Não
deixa de ser emblemático que ele tem algum poder, talvez o de manter refém sua
própria consciência, de seqüestrar seu próprio corpo em nome da sobrevivência,
que aliás parece ter orgulho em vociferar aos quatro cantos sua atitude
obediente ao modelo atual.
Muitos
criticam efusivamente a expressão mais visível desse cretino homérico, tratando
de denunciar o chamado indi-
vidualismo, mas
esta hipocrisia não leva em conta que este individualista se torna um ser de
traços egoístas devido à impossibilidade de compreender a práxis como elemento
entre teoria e prática, em sentido dialético, que nos leva a um aprofundar do
senso comum. Os pequeno-burgueses, com suas teorias morais alicerçadas na
religião cristã (de vários naipes e cores), insistem em dizer que o problema
não passa de perversão individual, que a solução estaria numa solidariedade, na
fraternidade que só as religiões teriam possibilidade de realizar.
Por outro
lado, sua práxis está totalmente em conformidade com as estruturas lógicas que
são impostas pela forma-mercadoria, mesmo assim, a relação com as coisas é
direta, imediata e toda forma de mediação não passa de um substrato que nos
leva a dizer, em outras palavras, que a coisa manifestada e a o que se pensa
acerca desta é linguisticamente o mesmo. Há uma consciência impregnada nesse
processo, pois “Com efeito, o homem comum corrente se encontra em uma relação
direta e imediata com as coisas – relação que não pode deixar de ser consciente
–, mas nela a consciência não distingue ou separa a prática como seu objeto
próprio, para que se apresente diante dela em estado teórico, isto é, como
objeto do pensamento”[6]. Daí podermos inferir, com certa
licitude, o fato da imagem corresponder às relações sociais. O estrategista
moderno sabe exatamente a quem deve obedecer e de que forma deve fazê-lo, sua
preservação é, concomitantemente, a preservação do próprio sistema. Isto
parece um paradoxo, mas é no interior dele que esse sujeito tornado cretino a
cada instância de sua existência, permanece como que a esperar, ainda, a
possibilidade de realização.
O mito da realidade que se apresenta
sem qualquer necessidade de argumentação ou explicação, a vida estabelecida em
conformidade, a conformação diríamos, absoluta, a necessidade de preservação a
todo custo, o imperativo produtivo para o consumo, a técnica que deve ser
adquirida a fim de que este cretino seja útil à empresa, mesmo que intimamente
permaneça a insegurança material e espiritual, todos esses elementos
caracterizam parte fundamental da condição do desse indivíduo. Trata-se,
então, de elaborar mecanismos de reação a uma realidade da qual não se tem
muito claro o que ela é, mas que, de alguma forma, atinge ca- da qual em sua
singularidade. A singularidade afeta o indivíduo na sua mais íntima realidade,
ao mesmo tempo, toca-lhe o corpo, a sensação, a percepção, a intuição, toca-lhe
a consciência, toca-lhe na dor e no prazer, enfim este indivíduo sente as
agruras de um mundo que lhe é adverso, perverso na sua condição de realização,
no entanto, ainda trafega por meandros nos quais permanece com a convicção de
que há possibilidades, mas algo não corresponderia às suas expectativas,
estas deverão se cumprir se, por ventura, houver uma adequação, diríamos, uma
harmonização entre o que o sistema exige e o que o indivíduo deve fazer para se
adaptar perfeitamente.
Se
formos levar em conta a relação entre o sistema e o indivíduo, podemos observar
que este é instado continuamente a se adequar ao modelo vigente, cabendo-lhe
mudar quantas vezes for necessário para encontrar o trilho certo, no qual
realizará suas vontades. Os desejos desse indivíduo somente poderão ser
satisfeitos na medida em que souber equilibrá-los às regras do capitalismo,
dito de outra forma, é neste contexto que surge a necessidade imperiosa de
configurar uma imagem à forma-mercadoria, na sua totalidade. Uma imagem que é
portadora de conteúdos, e que são formalmente instituídos no comportamento dos
indivíduos. Por outro lado, uma imagem que fugiu ao controle e se apresenta como
reprodução esquemática das estruturas da produção de valor. E é por isso que
ele se sente só no meio de um turbilhão de imposições, sendo coagido e
recebendo, por parte de um senhor absoluto, o juízo do que deve ser feito para
alcançar com méritos, o objetivo supremo dessa sociedade.
O
engano nesse processo é que se há algo de utópico trata-se do capitalismo em
si. Nada há no capitalismo que nos indique que será capaz de oferecer os
instrumentos para a realização do ser humano na sua totalidade, sua utopia
reside em suas contradições internas. Esse indivíduo que tanto faz, que tanto
luta para se harmonizar ao sistema, jamais poderá fazê-lo, jamais encontrará
sua paz, jamais haverá a harmonia entre si e a forma-mercadoria, bastando a
ele, tão-somente, continuar a ser explorado, sodomizado, torturado até o fim de
seus dias, a não ser que encontre meios para emancipar-se. Entretanto, esses
meios não se darão por mágica, por voluntarismo, ou por meio de conversões
moral-religiosas, mas por meio de ações entre os próprios indivíduos, já que
estes são os que podem subverter a lógica da estrutura da forma-mercadoria,
podem, contrariamente a todas as determinações e determinismos, romper e minar
a realidade em que se encontram.
Voltemos
à sua consciência, ela está sobrecarregada pelos sentidos imediatos, vê, toca,
cheira, sente toda sorte de emanações e exortações que lhe chegam do mundo, mas
este mundo não é isento, um todo sem qualquer intencionalidade. O mundo está
composto por seus símbolos que são a expressão de um processo de relações, e em
todas as relações, em todos os momentos, há um elemento que as coloca em é de
igualdade, uma linguagem comum, uma moeda de troca com a qual todos podem se
corresponder, que é a mercadoria. Por conseguinte, sua moral pequeno-burguesa
se espalha por todas as relações de sua vida social, baseando-se nessa complexa
estrutura que penetra todas as formações sociais.
Sua objetividade é seu orgulho, a
virtude atual se condensa na capacidade de obedecer às ordens de uma estrutura
cuja face de dominação é sem um dono explícito, obedece como um reprodutor
automático que se orgulha daquilo que lhe foi “ofertado” ao longo de sua penosa
carreira pelos meandros do capitalismo, sentindo-se realizado, como quem
cumpriu sua missão na face da terra, missão carregada de moral, de valor
religioso, de imperiosa lei do mercado. “Essa atitude natural baseia-se em ver
a atividade prática como um simples dado que não requer explicação”[7] e nada parece requer qualquer
explicação de cunho crítico-reflexivo, apenas as necessárias úteis,
axiomáticas, para a manutenção do emprego, para a ela- boração da
estratégia para sobreviver no cotidiano. Qualquer forma até mesmo de
possibilidade de romper com o senso-comum a fim de se perguntar sobre as
verdadeiras razões da alienação, não ocorre, e a consciência se reduz a um
amontoado de impressões, sensações e modelos que são seguidos ad eternum pelo indivíduo –
valores religiosos anacrônicos, moral sexual da autopunição, cinismo, preconceitos,
competição como virtude, apropriação capitalista, etc. – e nada se apresenta
como um vestígio, por mínimo que seja, para romper com a mesmice social e
chacoalhar este indivíduo para ao menos possa refletir sobre sua condição.
Não
deixa de haver reflexão sobre sua condição, no entanto, ela se reduz a tentar
explicar formalmente as razões pelas quais há deficiência para alcançar os
objetivos do próprio sistema, isto é, seu nexo com a realidade está exatamente
para aparar arestas a fim de cumprir as regras do jogo; não passa pela sua
consciência, questionar o jogo, apenas manter-se em condições para continuar a
jogá-lo, por isso, “Seus nexos com esse mundo e consigo mesma (a consciência)
aparecem diante dela em um plano ateorético. Não sente a necessidade de rasgar
a cortina de preconceitos, hábitos mentais e lugares comuns sobre a qual
projeta seus atos práticos”[8].
IV
E
quanto mais se vê o pensador compromissado em interpelar os indivíduos e
intervir sobre essa realidade absurdamente insensata, mais sente-se enredado
pelas formas mentais que atingem a quase totalidade do universo social, cujas
formas de mentalidade estão organizadas como se fossem uma única estrutura
impessoal. Dificilmente poderíamos penetrar na consciência desse homem, do
cretino fundamental sem que nos sentíssemos aprisionados e com a nítida
impressão de que a realidade assumira novos contornes em torno à mentira social
reinante, inclusive criando a sensação de impotência recorrente. A utilidade
desse pensamento está no fato de que serve totalmente ao modo de vida que a
mercadoria impõe a todos indistintamente. Isto não é suficiente, é preciso
então imaginar um mundo para além desse cretino social, da apatia política que
o reveste, da condição insana na qual se meteu. Não é um único indivíduo, mas
um amontoado que se torna uma multidão.
Ainda
assim, devemos ter em mente que há um tensionamento entre a prática e a
teoria. Muitos cínicos exigirão uma alternativa. Mas o crítico social deve ter
em mente que há limites nesse processo crítico-reflexivo, mas não deve deixar
de apontar a realidade ou, ao menos, dar à realidade uma interpretação, que
seja a representação a partir de elementos razoáveis sobre ela e isto implica
que, de um lado, o intelectual está impregnado dessa mesma realidade, de outro,
é mister abstraí-la para que ofereça elementos que possam respondê-la com o
intuito de não se mostrar além ou aquém desse contexto.
Alternativas
são possíveis? Alternativas existem? Sim, de modo pragmático, sempre haverá
alternativas, mas aqui é imprescindível não mergulhar numa espécie de
profetismo social, político ou ideológico. Sem enfrentar o capitalismo não será
possível superar a condição do cretino social. Uma espécie de guerrilha de
consciência mesclada com um pacifismo que enfrente não a violência endêmica do
sistema, revelada pelas guerras e pelo controle hierárquico, devemos nos tornar
pacifistas contra a forma-mercadoria diante da totalidade das relações sociais.
O problema crucial a ser enfrentado é que o processo da produção se estendeu
por toda a arquitetura social, devemos penetrar, de alguma forma, as
organizações e estruturas produtivas, desburocratizar tais articulações,
desmer -cantilizar as relações hierárquicas, de forma que a guerrilha e o
pacifismo estejam em relação dialética, no interior dessas relações de poder,
cuja base é o do trabalho, da produção, que se espalha pelos ambientes da educação,
da família, do Estado, dos institutos de controle, etc. e dessa forma, é
preciso minar essas relações até que o sistema entre em colapso. Não sejamos
ingênuos no sentido de acreditar que ao minar essas relações o capitalismo
implodiria, uma vez que temos de considerar aquelas forças que imprimem ao
capitalismo a sua contradição, sua decadência e seu colapso, do ponto de vista
lógico. Assim, devemos atuar dialeticamente no interior do sistema e, de outro
lado, estarmos atentos às fissuras do sistema.
[2] BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a
transformação das pessoas em mercadoria. Tradução de Carlos Alberto Medeiros.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 42.
[3] JAPPE, Anselm. Guy Debord. Tradução de Iraci
D. Poleti e Carla da Silva Pereira. Lisboa: Antígoca, 2008, p. 17.
[4] HAUG, Wolfgang Fritz Haug. Crítica da
estética da mercadoria. Tradução de Erlon José Paschoal. São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 79.
[5] HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. Tradução
de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: CENTAURO,
2002, p. 146.
[6] VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da
práxis. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales –
CLACSO; São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 32
Postado
por Atanasio Mykonios às 22:06:00
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