o
arquivo
VICTOR
GIUDICE
joão
era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora
tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se tanto. Não tivera uma
só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.
No dia
seguinte mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o
salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.
Passou
a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito.
Acordava mais cedo, e isso parecia aumentar-lhe a disposição.
Dois
anos mais tarde, veio outra recompensa.
O chefe
chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.
Desta
vez a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior:
dezesseis por cento.
Novos
sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.
Agora, joão
acordava às cinco da manhã. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos
rosada. O contentamento aumentou.
Prosseguia
a luta.
Porém,
nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.
joão
preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos.
Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou
a trabalhar, mais duas horas diárias.
Uma
tarde, quase no fim do expediente, foi chamado ao escritório principal.
Respirou
descompassado.
- Seu joão.
Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.
joão
baixou a cabeça em sinal de modéstia.
-
Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial
de nosso reconhecimento.
O
coração parava.
- Além
de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião
de ontem, rebaixá-lo de posto.
A
revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.
- De
hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade com menos cinco
dias de férias. Contente?
Radiante,
joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao
trabalho.
Nesta
noite, joão não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio.
Mais
uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um
sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não haveria necessidade
de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.
Chegava
a casa às onze da noite, levantava--se
às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e ônibus para garantir meia hora
de antecedência.
A vida
foi passando, com novos prêmios.
Aos
sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo
acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas.
Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou
vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os
farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.
O corpo
era um monte de rugas sorridentes.
Todos
os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho.
Quando
completou quarenta anos de serviços, foi convocado pela chefia:
- Seu joão.
O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua
função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.
O
crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca
tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos.
Tentou sorrir:
-
Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha
aposentadoria.
O chefe
não compreendeu:
- Mas
seu joão, logo agora que o senhor está sem salário? Por quê? Dentro de alguns
meses terá de pagar a taxa inicial par permanecer em nosso quadro. Desprezar
tudo isso? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?
A
emoção impediu qualquer resposta.
joão
afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estrutura
regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas,
compactas. Nos lábios, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.
joão
transformou-se num arquivo de metal.
Quando encontrei este texto, no livro: Português
na ponta da língua, v. 2, 6ª série, de albergaria, autores: Lino de; Fernandes,
Márcia e Espechit, Rita; Belo Horizonte: editora dimensão, em 2000. Não imaginei, quão rico seria, e como ajudaria para podermos
analisar recursos dos quais os escritores podem lançar mão, para provocar a
percepção e atenção do leitor.
Inclusive, incauta, pois como os erros chamam a minha
atenção, ponho-me a corrigir os pseudo erros, sem pensar que o autor
pode ter seus propósitos e como hoje em dia o que mais se vê são erros de
concordância e ortográficos, não titubeei em acertar o tal do erro e errei!
Quase perco um filão de interpretação, um jorro de observação, percepção e
atenção, ainda bem que corrigi o meu ímpeto a tempo, pois li o texto e captei a
mensagem. Isso ocorre sempre que se é parcial a parcialidade nos induz ao erro,
devemos sempre olhar o todo.
Assim é que ia perdendo o joão, como assim o
joão? O texto tem início com o título todo em minúscula, quando a exigência é
que se usem as maiúsculas, mas como assim se arquivo é um substantivo
comum e portanto escreve-se com minúscula.
Seguindo o texto no segundo parágrafo o que vemos, é que o
parágrafo começa com minúscula e além disso a palavra é um nome próprio: João.
Ora! Para o início
de frase a regra diz que se deve usar a letra maiúscula e a mesma regra se
aplica ao nome próprio. Então
o que é que ocorre? É um erro ortográfico ou gráfico? Claro que não! É um
artifício proposital, usado pelo autor! Por quê? Ora simples! O personagem chamado
joão é um arquivo, logo um substantivo comum cuja regra diz que se deve
usar a letra minúscula. Então vejamos o arquivo é uma coisa, portanto
para designá-lo usa-se a letra minúscula e mesmo tendo um nome próprio não é
guindado à posição de nome de pessoas, países, estados, cidades, acidentes
geográficos, nomes científicos, nomes de logradouros etc. os escolhidos para o
uso da letra maiúscula, logo a regra se mantém e o nome é joão.
Outra característica do texto é atribuir ao joão características
humanas e com isso o joão é assalariado, precisa ser incentivado e mesmo
quando é rebaixado em sua humildade fica feliz e se acha privilegiado por poder
continuar trabalhando, ainda que com salário mais modesto, mas se pensarmos um
pouco, veremos que o que ocorre é que a moderna tecnologia, vai fazendo com que
joão caia em desuso, pois com o advento do computador, ele se tornou
obsoleto, ocupa excesso de espaço, não é mais útil para guardar os documentos
que são a alma da empresa, pois agora permanecem nos arquivos do computador.
Este texto me surpreendeu devido à sua riqueza e me
proporcionou uma gama de olhares que partilhei com meus alunos e eles
partilharam comigo, foi uma experiência lúdica e enriquecedora, divertimo-nos
com a indignação de uns quantos à subserviência do joão e apreciamos a
sensibilidade de outros face ao esforços desse mesmo joão para superar
os obstáculos que lhe eram propostos.
Vimos no texto a intriga humana e a inveja, os sentimentos
menores do ser humano e que são tão maiores, pois proliferam como mato no meio
dos mais belos jardins.
Espero que apreciem o texto e desculpem ter feito as minhas
ingerências, mas não resisti, porém ainda existe muita coisa que pode ser
explorada.
Eu estudei esse texto com uns 9.. 10 anos.. creio eu. (Hoje tenho 39).
ResponderExcluirLembrei dele hoje e decidi procurar... na época eu choquei a professora e a sala com a minha interpretação... mas lendo hoje creio q é a mais acertada sobre a mensagem.
Mostra a desvalorização do ser humano... e como ele aceita passivo ser explorado.
Ele enrijece e torna-se cinza porque morre naquele instante. Por fim... quando joão torna-se um arquivo... passa a ser o que sempre foi. Meramente um registro... um número.
Muito obrigado pelo seu comentário! è importante para mim saber que pessoas tiram proveito do que seleciono, pois o meu objetivo é despertar as inteligências adormecidas. Mais uma vez obrigado
ExcluirAdelaide Abreu-dos-Santos