quarta-feira, 29 de outubro de 2014

VICTOR GIUDICE - O ARQUIVO

o arquivo
VICTOR GIUDICE
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No fim de um ano de trabalho, joão obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos.
joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se tanto. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.
No dia seguinte mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.
Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isso parecia aumentar-lhe a disposição.
Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.
O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.
Desta vez a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezesseis por cento.
Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.
Agora, joão acordava às cinco da manhã. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou.
Prosseguia a luta.
Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.
joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar, mais duas horas diárias.
Uma tarde, quase no fim do expediente, foi chamado ao escritório principal.
Respirou descompassado.
- Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.
joão baixou a cabeça em sinal de modéstia.
- Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.
O coração parava.
- Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.
A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.
- De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade com menos cinco dias de férias. Contente?
Radiante, joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho.
Nesta noite, joão não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio.
Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não haveria necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.
Chegava a casa às onze da  noite, levantava--se às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e ônibus para garantir meia hora de antecedência.
A vida foi passando, com novos prêmios.
Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.
O corpo era um monte de rugas sorridentes.
Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho.
Quando completou quarenta anos de serviços, foi convocado pela chefia:
- Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.
O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:
- Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.
O chefe não compreendeu:
- Mas seu joão, logo agora que o senhor está sem salário? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial par permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isso? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?
A emoção impediu qualquer resposta.
joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estrutura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lábios, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.
joão transformou-se num arquivo de metal.
NECROLÓGIO. Rio de Janeiro. o cruzeiro , 1979,p. 35.

Quando encontrei este texto, no livro: Português na ponta da língua, v. 2, 6ª série, de albergaria, autores: Lino de; Fernandes, Márcia e Espechit, Rita; Belo Horizonte: editora dimensão, em 2000. Não imaginei, quão rico seria, e como ajudaria para podermos analisar recursos dos quais os escritores podem lançar mão, para provocar a percepção e atenção do leitor.
Inclusive, incauta, pois como os erros chamam a minha atenção, ponho-me a corrigir os pseudo erros, sem pensar que o autor pode ter seus propósitos e como hoje em dia o que mais se vê são erros de concordância e ortográficos, não titubeei em acertar o tal do erro e errei! Quase perco um filão de interpretação, um jorro de observação, percepção e atenção, ainda bem que corrigi o meu ímpeto a tempo, pois li o texto e captei a mensagem. Isso ocorre sempre que se é parcial a parcialidade nos induz ao erro, devemos sempre olhar o todo.
Assim é que ia perdendo o joão, como assim o joão? O texto tem início com o título todo em minúscula, quando a exigência é que se usem as maiúsculas, mas como assim se arquivo é um substantivo comum e portanto escreve-se com minúscula.
Seguindo o texto no segundo parágrafo o que vemos, é que o parágrafo começa com minúscula e além disso a palavra é um nome próprio: João. Ora! Para o início de frase a regra diz que se deve usar a letra maiúscula e a mesma regra se aplica ao nome próprio. Então o que é que ocorre? É um erro ortográfico ou gráfico? Claro que não! É um artifício proposital, usado pelo autor! Por quê? Ora simples! O personagem chamado joão é um arquivo, logo um substantivo comum cuja regra diz que se deve usar a letra minúscula. Então vejamos o arquivo é uma coisa, portanto para designá-lo usa-se a letra minúscula e mesmo tendo um nome próprio não é guindado à posição de nome de pessoas, países, estados, cidades, acidentes geográficos, nomes científicos, nomes de logradouros etc. os escolhidos para o uso da letra maiúscula, logo a regra se mantém e o nome é joão.
Outra característica do texto é atribuir ao joão características humanas e com isso o joão é assalariado, precisa ser incentivado e mesmo quando é rebaixado em sua humildade fica feliz e se acha privilegiado por poder continuar trabalhando, ainda que com salário mais modesto, mas se pensarmos um pouco, veremos que o que ocorre é que a moderna tecnologia, vai fazendo com que joão caia em desuso, pois com o advento do computador, ele se tornou obsoleto, ocupa excesso de espaço, não é mais útil para guardar os documentos que são a alma da empresa, pois agora permanecem nos arquivos do computador.
Este texto me surpreendeu devido à sua riqueza e me proporcionou uma gama de olhares que partilhei com meus alunos e eles partilharam comigo, foi uma experiência lúdica e enriquecedora, divertimo-nos com a indignação de uns quantos à subserviência do joão e apreciamos a sensibilidade de outros face ao esforços desse mesmo joão para superar os obstáculos que lhe eram propostos.
Vimos no texto a intriga humana e a inveja, os sentimentos menores do ser humano e que são tão maiores, pois proliferam como mato no meio dos mais belos jardins.
Espero que apreciem o texto e desculpem ter feito as minhas ingerências, mas não resisti, porém ainda existe muita coisa que pode ser explorada.
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2 comentários:

  1. Eu estudei esse texto com uns 9.. 10 anos.. creio eu. (Hoje tenho 39).
    Lembrei dele hoje e decidi procurar... na época eu choquei a professora e a sala com a minha interpretação... mas lendo hoje creio q é a mais acertada sobre a mensagem.
    Mostra a desvalorização do ser humano... e como ele aceita passivo ser explorado.
    Ele enrijece e torna-se cinza porque morre naquele instante. Por fim... quando joão torna-se um arquivo... passa a ser o que sempre foi. Meramente um registro... um número.

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    1. Muito obrigado pelo seu comentário! è importante para mim saber que pessoas tiram proveito do que seleciono, pois o meu objetivo é despertar as inteligências adormecidas. Mais uma vez obrigado
      Adelaide Abreu-dos-Santos

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