sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A RÃ DO POÇO - ILAN BRENMAN

A RÃ DO POÇO
ILAN BERNMAN
Tal história é encontrada em diversas compilações de contos indianos, e alguns relatam que o grande mestre Ramakrishna a contou a seus discípulos:
No período das moções, com as fortes e persistentes chuvas, uma cidade próxima ao sagrado rio Ganges foi toda alagada: as ruas, os mercados e as casas. Quando a chuva cessou e as águas começaram a baixar, um pequeno girino foi parar no poço de um pequeno casebre.
O girino cresceu e viveu por toda a vida em tal poço. Ao tornar-se uma rã, não se lembrava mais de onde tinha vindo; sua realidade agora era aquele lugar seguro e acolhedor.
     Certa manhã, uma rã estrangeira ouviu um som vindo do poço e resolveu averiguar:
       - Olá, tem alguém aí? – perguntou a rã estrangeira.
     A rã do poço tirou rapidamente a cabeça de dentro da água e gritou:
       - Sim, estou aqui! Quem é você?
    - Sou uma rã, assim como você? – respondeu a estrangeira.
      Curiosa, a rã do poço perguntou:
      - E de onde você vem?
      - Venho de Calcutá.
       - E essa tal Calcutá é grande?
       A estrangeira esboçou um sorriso e respondeu.:
       - Imensa, gigantesca, colossal!
A rã do poço não gostou de ouvir aquilo e perguntou:
- Ela é maior do que isto?! – e se esticou o mais que podia.
A estrangeira não agüentou e gargalhou:
- Minha irmã, muito maior do que isso!
A rã do poço começou a ficar furiosa e perguntou:
- Calcutá é maior do que o meu poço?
         A estrangeira, que agora não parava de rir, respondeu:
         - Infinitamente maior do que o seu poço!
         A rã do poço, tomada pela fúria, respondeu:
   - Nada pode ser maior do que o meu poço, sua mentirosa!!! Vá embora, não a quero mais por perto!
        A estrangeira se afastou e a rã do poço continuou a viver no seu amado e tranquilo lar até a morte.
         O sábio que relatou esta história disse, ao seu final:

        - assim são os homens: pensam que aquilo que não vêem não existe.
fim

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

VICTOR GIUDICE - O ARQUIVO

o arquivo
VICTOR GIUDICE
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No fim de um ano de trabalho, joão obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos.
joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se tanto. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.
No dia seguinte mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.
Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isso parecia aumentar-lhe a disposição.
Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.
O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.
Desta vez a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezesseis por cento.
Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.
Agora, joão acordava às cinco da manhã. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou.
Prosseguia a luta.
Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.
joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar, mais duas horas diárias.
Uma tarde, quase no fim do expediente, foi chamado ao escritório principal.
Respirou descompassado.
- Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.
joão baixou a cabeça em sinal de modéstia.
- Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.
O coração parava.
- Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.
A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.
- De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade com menos cinco dias de férias. Contente?
Radiante, joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho.
Nesta noite, joão não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio.
Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não haveria necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.
Chegava a casa às onze da  noite, levantava--se às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e ônibus para garantir meia hora de antecedência.
A vida foi passando, com novos prêmios.
Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.
O corpo era um monte de rugas sorridentes.
Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho.
Quando completou quarenta anos de serviços, foi convocado pela chefia:
- Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.
O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:
- Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.
O chefe não compreendeu:
- Mas seu joão, logo agora que o senhor está sem salário? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial par permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isso? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?
A emoção impediu qualquer resposta.
joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estrutura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lábios, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.
joão transformou-se num arquivo de metal.
NECROLÓGIO. Rio de Janeiro. o cruzeiro , 1979,p. 35.

Quando encontrei este texto, no livro: Português na ponta da língua, v. 2, 6ª série, de albergaria, autores: Lino de; Fernandes, Márcia e Espechit, Rita; Belo Horizonte: editora dimensão, em 2000. Não imaginei, quão rico seria, e como ajudaria para podermos analisar recursos dos quais os escritores podem lançar mão, para provocar a percepção e atenção do leitor.
Inclusive, incauta, pois como os erros chamam a minha atenção, ponho-me a corrigir os pseudo erros, sem pensar que o autor pode ter seus propósitos e como hoje em dia o que mais se vê são erros de concordância e ortográficos, não titubeei em acertar o tal do erro e errei! Quase perco um filão de interpretação, um jorro de observação, percepção e atenção, ainda bem que corrigi o meu ímpeto a tempo, pois li o texto e captei a mensagem. Isso ocorre sempre que se é parcial a parcialidade nos induz ao erro, devemos sempre olhar o todo.
Assim é que ia perdendo o joão, como assim o joão? O texto tem início com o título todo em minúscula, quando a exigência é que se usem as maiúsculas, mas como assim se arquivo é um substantivo comum e portanto escreve-se com minúscula.
Seguindo o texto no segundo parágrafo o que vemos, é que o parágrafo começa com minúscula e além disso a palavra é um nome próprio: João. Ora! Para o início de frase a regra diz que se deve usar a letra maiúscula e a mesma regra se aplica ao nome próprio. Então o que é que ocorre? É um erro ortográfico ou gráfico? Claro que não! É um artifício proposital, usado pelo autor! Por quê? Ora simples! O personagem chamado joão é um arquivo, logo um substantivo comum cuja regra diz que se deve usar a letra minúscula. Então vejamos o arquivo é uma coisa, portanto para designá-lo usa-se a letra minúscula e mesmo tendo um nome próprio não é guindado à posição de nome de pessoas, países, estados, cidades, acidentes geográficos, nomes científicos, nomes de logradouros etc. os escolhidos para o uso da letra maiúscula, logo a regra se mantém e o nome é joão.
Outra característica do texto é atribuir ao joão características humanas e com isso o joão é assalariado, precisa ser incentivado e mesmo quando é rebaixado em sua humildade fica feliz e se acha privilegiado por poder continuar trabalhando, ainda que com salário mais modesto, mas se pensarmos um pouco, veremos que o que ocorre é que a moderna tecnologia, vai fazendo com que joão caia em desuso, pois com o advento do computador, ele se tornou obsoleto, ocupa excesso de espaço, não é mais útil para guardar os documentos que são a alma da empresa, pois agora permanecem nos arquivos do computador.
Este texto me surpreendeu devido à sua riqueza e me proporcionou uma gama de olhares que partilhei com meus alunos e eles partilharam comigo, foi uma experiência lúdica e enriquecedora, divertimo-nos com a indignação de uns quantos à subserviência do joão e apreciamos a sensibilidade de outros face ao esforços desse mesmo joão para superar os obstáculos que lhe eram propostos.
Vimos no texto a intriga humana e a inveja, os sentimentos menores do ser humano e que são tão maiores, pois proliferam como mato no meio dos mais belos jardins.
Espero que apreciem o texto e desculpem ter feito as minhas ingerências, mas não resisti, porém ainda existe muita coisa que pode ser explorada.
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terça-feira, 14 de outubro de 2014

ANNITA COSTA MALUFE - O QUE FALO NUNCA É O QUE FALO

O que falo nunca é o que falo

Por Annita Costa Malufe
PONTES TRANSPONÍVEIS
Quatro poemas inéditos
enxergo o ponto daqui entre
nós um banco um boteco um prédio
que avança na calçada um poste
antigo onde ele deve ter se apoiado
um dia para descansar para cumprimentar
alguém um prédio que avança um
homem que dorme um velho que
escorrega e cai enxergo com poucos
detalhes o letreiro do ônibus daqui
o anúncio de um lugar que fico imaginando
como será fico mobiliando como
quem mobilia uma casa um espaço novo
desabitado colocando peça por peça
pessoas bichos muros escadas casas postes
de luz bancos de madeira pontos de ônibus
sem cobertura faixas amarelas no chão
a pintura desgastada ela acenando ao táxi
a mulher ajudando-a a andar ele
deve ter se apoiado um dia tenho certeza
e tantos anos depois você fotografou
o poste enferrujado a esquina em que os
carros viram bruscos demais sem obedecer
o sinal pessoas bichos muros vou
mobiliando uma pequena cidade onde
devem ser lugares que daqui enxergo com
dificuldade nos letreiros que passam
escorregam pela visão passam correndo como
será gosto de imaginar lugares que nunca vi
*
o que falo nunca é o que falo
e sim outra coisa ouve-me ouve-me
daí deste silêncio deste longe longe
a primeira vez que ouvi foi isto longe
uma voz secreta balbuciando ouve
ouve daí você pode me ouvir? era a
pergunta como ficar por um instante aí
no silêncio em torno da pergunta
sem resposta é como estar sem
resposta o que falo nunca é exatamente
o que falo sereno limpo calmo esperar
longe longe a primeira vez que te
ouço é a primeira mas uma voz secreta
um assobio você pode girar em torno
a pergunta não tem resposta como ficar
ficar aí o silêncio em torno é sim
outra coisa o que falo ouve daí
ouve-me você certa vez uma resposta
diria que uma resposta não é jamais
uma resposta o que falo falo daqui
sem calcular certa vez seria isto um
assobio descentrar procurar não é
bem este o conteúdo forma e conteúdo
forma conteúdo separar separar
certa vez esta a pergunta ouvir longe
longe sem resposta ficar este espaço
ouça este espaço em torno este silêncio
vazio escuro espera o que falo qual é
a pergunta qual sereno calmo esperar
qual é senão assobio alto baixo ficar
fluir fluir sem retorno um assobio longe longe
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“Ouve-me, ouve meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa”
Clarice Lispector, em "Água Viva"

não tinham sido todas estas coisas
sou capaz de jurar olhando pela porta vendo
escorrer a água pelas pedras não eram
não me lembro de ter ouvido isto quando a porta
bateu ele falando alto ela correndo com os pés
descalços vá se calçar menina e depois quantas
vezes procurei eram dias de sol dias de chuva
não importa quantas vezes procurei retomar
o fio da conversa quantas vezes a busquei pela
rua pela estrada a calçada ardendo na sola do pé
todas as coisas que ouvimos a cabeça baixa a
destilação do vínculo o queixo abaixado era
assim que ouvia era assim que a voz rouca
do avô ia lentamente entrando pelos
ouvidos ainda pouco entendida as expressões
roucas as expressões que arranhavam os
ouvidos o fio da conversa quantas vezes procurei
a batida da porta a mesma batida mais uma e
outra vez sou capaz de jurar que não eram bem
estas coisas e hoje o que importa escutar
por trás da porta o fio rouco rasgando a
cortina a aspereza de um sopro cavando os
ouvidos o queixo abaixado era lentamente
tão lentas as expressões aderiam ao silêncio à sola
do pé à ardência na sola do pé ali da porta
vendo a água escorrer e delinear um pequeno
córrego vá se calçar menina volte para casa
um pequeno córrego sem retorno comum
ou conhecido
*
não sei como cheguei aqui
estou nu em uma cama de
metal sentindo um cheiro de azinhavre
não sei como as palavras me vêm
não sei de quem são estas palavras estou
nu ele me diz que não estou nu mas
sei que estou
ainda que não reconheça esta
pele não reconheça estas paredes
que colocaram ao meu redor
estou nu como daquela vez foram
longas horas e o frio custa a passar
estou diante de você? preciso
me perguntar a cada vez sou
um homem adulto? você repete você
foi sempre a minha repetidora
assim como se diz em francês
ensaio assim como você e eu sempre
repetimos muito as mesmas
preocupações? eu preciso te
perguntar é um esforço não
sei como cheguei não reconheço
esses cheiros o cheiro do lençol o
cheiro dessas mãos de quem são estas
mãos estou nu não quero
que me toquem
peço
que não me toquem
mais
e o cômodo é
uma caixa de ressonâncias
vazia
um espaço oco
em que apenas eu
me ouço
em exaustão

Publicado em 17/10/2009

Annita Costa Malufe

É poeta. Nasceu em São Paulo, em 1975. É autora de "Fundos para Dias de Chuva" (Ed. 7 Letras, 2007), "Nesta Cidade e Abaixo de Teus Olhos" (Ed.7Letras, 2007), e "Como se Caísse Devagar" (Ed.34/ PAC, 2008). É doutora em teoria e história literária pela Unicamp e mestre pela PUC-SP, com o ensaio "Territórios Dispersos: A Poética de Ana Cristina Cesar" (Ed. Annablume/Fapesp, 2006).

Atualmente realiza seu pós-doutorado na PUC-SP, no Núcleo de Estudos da Subjetividade (Psicologia), sob supervisão de Peter Pál Pelbart. 

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O CRETINO SOCIAL - POSTADO POR ATANASIO MYKONIOS

O Cretino Social
domingo, 23 de janeiro de 2011

          I

Com um humor cáustico e ácido, Nelson Rodrigues[1] nos apresentou a figura emblemática do Cretino Fundamental. Seria quase uma redundância e uma covardia procurar avançar nesse emblema social, que se tornou um marco para a compreensão do indivíduo atual, com muita perspicácia, apesar de não podermos deixar de considerar, de alguma forma, a trajetória política de Nelson Rodrigues, mas reconhecer seu tirocínio no que tange à produção de tipos sociais muito bem marcados e envoltos por uma aura acachapante. Mas este é o motivo, ou, o mote pelo qual poderei elaborar uma reflexão ampliando essa questão do cretino social para o que podemos considerar a preservação de um discurso que tem como objetivo reproduzir a estrutura do capital no desdobramento da mercadoria.
Haverá qualquer motivo que nos leve a considerar que o homem moderno se realizou plenamente? Terá este indivíduo alcançado seus projetos humanos no que tange às suas próprias perspectivas? Terá realizado seus sonhos humanos mais profundos? Quanto ao que lhe cabe no mundo ocupado pela lógica social da mercadoria, seria este indivíduo emancipado em sua condição social? Sua suposta alienação seria apenas motivo de crítica por parte dos que se opõem ao capitalismo, de sorte que não passaria de um nicho de intelectuais anacrônicos em um mundo prático, submerso no paraíso das coisas e objetos que compõem a felicidade imediata dos homens e das mulheres atuais? Em última instância, a que se deve o mal-estar que se apossa do meu pensamento e faz com que eu atribua um juízo sobre este indivíduo que está precisamente voltado para um mundo ensimesmado?
Diríamos, sem qualquer risco de incorrermos em erro, que o homem moderno vive o seu mais profundo e histórico retrocesso, ou, em vista das grandes promessas que lhe foram atribuídas, estaria este sujeito moderno em vias de um colapso psicossocial. De um modo muito peculiar, a alienação e o imediato das relações são o cotidiano santificado dos seres humanos, o que parece ser apenas um dado para ser colocado à prova, é para o sujeito comum, aturdido com sua alienação, algo pelo qual não deve prevalecer qualquer crítica. Por mais que haja uma crítica imperiosa ao que muitos enxergam como o império da individualidade, o indivíduo moderno foi alijado de sua própria capacidade de cumprir seu destino, está apartado de sua individualidade e obedece a uma espécie de estrutura invisível que o condiciona, dando-nos a impressão de que é ele um idiota na forma grega de sua acepção. Porém, ao observar com mais acuidade e paciência, podemos encontrar nesse sujeito um comportamento que obedece a uma determinação que é, em princípio, coletiva, pois cada qual converge, mesmo com seu modo exclusivista e excludente, a uma formação social que se tornou um eixo para todos se sentirem pertencentes ao sistema.

 II
Este destino, atado às determinações e os modos pelos quais a mercadoria se expressa no interior do comportamento mais rasteiro do homem, não mais se vê apartado das probabilidades do próprio sistema capitalista, ao contrário, quanto mais a sociedade capitalista se totaliza como um conjunto que abrange a linguagem dos indivíduos sociais, sua sintaxe, sua religião, sua família e suas instituições, mais se torna ele mesmo (o indivíduo) parte integrante – a tautologia social que suprime todas as probabilidades de reflexão crítica, sucumbindo a um senso comum, transformado em dogma perene de toda sociedade.

A atitude patrimonialista do indivíduo abur- guesado pela noção de preservação de sua herança, desen- volvendo para isto uma sociedade segura, cuja virtude estava na disciplina, no trabalho e no acúmulo, o trabalho era o grande valor que se encaixava perfeitamente nas condições existências desse indivíduo moderno. Estou aqui a me referir a um determinado modo de vida que começou especialmente num período em que o mundo conheceu o capitalismo pujante da indústria. Por isto “Esse desejo era de fato uma matéria-prima bastante conveniente para que fossem construídos os tipos de estratégias de vida e padrões comportamentais indispensáveis par atender à era do “tamanho é poder” e do “grande é lindo”: uma era de fábricas e exércitos de massa, de regras obrigatórias e conformidade às mesmas”[2]. Isto não quer dizer que este indivíduo historicamente construído a partir de uma visão de austeridade espartana e favor de um acúmulo para o bem das glórias humanas e divinas, que cumpria com uma forma de comportamento cuja base era a exploração do trabalho na forma mais acabada e, portanto, mais abstrata e alienada que a história pôde presenciar, seja, de algum modo, um exemplo de homem ou de indivíduo a ser seguido. É a partir dessa base psicossocial que houve as condições estruturais para um salto de qualidade que nos trouxe para este novo indivíduo, moderno, contemporâneo homem, atomizado, fragmentado, idiotizado, que sucumbiu a toda forma de exigência da mercadoria.
Este indivíduo, masculinizado pelas estruturas de produção e pela ideologia dos sistemas que fluem para se tornarem a expressão de uma metacultural, atualmente, a colonização da mercadoria em toda face da Terra, formalmente instituído pelo poder a ele mesmo aferido, foi levado gradativamente a abdicar da crítica em favor da cotidianidade, havendo então um ocultamento dos verdadeiros sentidos da exploração e do fetiche social. Sua transformação em um conteúdo imaginário, trazido para a realidade das imagens que se misturam às re- lações de cada dia, e que poderiam nos oferecer, mínima- mente, um estudo fenomenológico dessas relações, trazem um universo que nos coloca diante de um imenso vazio existencial. Quero com isto dizer que a alienação não pode ser apenas entendida como um dado historicamente aglutinado pelas forças de produção, mas, temos de considerar que a alienação se desdobrou diale- ticamente, de um modelo que arranca do indivíduo de sua própria condição inicial, de sua totalidade, de uma possível potencialidade de suas próprias forças para, logo em seguida, se tornar um ser conduzido por elementos alheios à sua vida, por isso, a indivi -dualidade foi extirpada da vida humana. Dessa forma, é lícito dizer que “Em relação ao primeiro estádio da evolução histórica da alienação, que se pode caracterizar como uma degradação do “ser” em “ter”, o espetáculo consiste numa degradação ulterior do “ter” em “parecer””[3].
No mundo das imagens em movimento, no mundo das imagens em virtualidade, temos a imagem que se constrói do homem comum, e de seu senso, isto é, o pensamento que ele tem de si mesmo, não passa de uma imagem. Mas esta imagem não existe solta, a pairar pela consciência, como uma mônada existencial. Não se trata disto, pois o caso é que esta imagem, ou as imagens que são construídas atuam diretamente sobre a vida dos indivíduos e também sobre suas relações a partir de uma realidade palpável. De que realidade falamos? Daquela cujo único sujeito de fato aparece, ou, dito de outro modo, o verdadeiro sujeito histórico contempo- râneo é a produção de valor capitalista e, por conseguinte, a sua expressão reveladora, mistificadora em determinado aspecto dessas relações, a saber, a mercadoria. É a partir e por meio desta coisa, a forma mercadoria, que a imagem do mundo se distorce, o ser humano, obrigado a viver sob a égide das relações engendradas pela mercadoria, é colocado numa teia, cujo primeiro estágio é a alienação, e  daí por diante, submete-se a um processo de inversões absurdas. Diremos que a necessidade de adquirir mercadorias faz com que não apenas o comportamento para a sua aquisição no mercado, bem como todas as formas de ação e estratégia no trabalho, nas hierarquias, nas decisões e na execução de qualquer coisa, além de todas as relações implicadas no modo de vida relacional, estejam absolutamente conformadas a uma lógica que implica obedecer a uma imagem.
De que imagem falamos? Da imagem projetada como modelo de todas as outras imagens sociais, de todas as imagens-objeto, de todas as imagens materiais ou espirituais, quer dizer, com isto, que tudo converge para um algo que se metamorfoseia em metalin -guagem, em meta-cultura, a mercadoria.
Ainda ficamos com o discurso restrito e reducionista de que a mercadoria é apenas um elemento a mais no processo de alienação, como se fosse o indivíduo o verdadeiro responsável pela sua alienação. No entanto, aqui é preciso fazer uma objeção a essa noção de senso comum, porque ambiguamente o homem-indivíduo teria poder sobre as mercadorias, no entanto, é ele dominado por uma forma-mercadoria que abrange todas as formas menores, e não se trata, como muitos ingenuamente atribuem, a impulsos, desejos, paixões, esquizofrenias estruturais, etc. É evidente que tudo faz parte do universo doentio do indivíduo atual, mas a mercadoria nos mostra a servidão com que o indivíduo se apresenta ante ela mesma, até porque “Os indivíduos servidos pelo capitalismo acabam sendo, ao final, seus servidores inconscientes. Eles não são apenas mimados, distraídos, alimentados e corrompidos”[4].
A alma dos negócios humanos está voltada especialmente para atender necessidades de um algo que não se manifesta totalmente e por isso mesmo, tem-se a impressão de que não existe de fato, que não passa de uma interpretação.
Neste momento em que o mundo está diante de um cataclisma social, perguntamos, de qualquer modo, se foi melhor que o sistema tenha falhado e mostrado suas fissuras. Se o capitalismo tivesse alcançado seu objetivo e não tivesse falhado em qualquer circuns- tância, seria o fim para este indivíduo. A sorte para todos nós é que nenhum sistema permanece como está e, por outro lado, histori- camente a consciência parece permanecer atada ao sistema, mesmo que viva a sua decadência em todos os seus aspectos. Por isso, a crítica a o cretino fundamental tem um limite histórico, re- presenta, por um lado, a substancial revolta para com um modo de vida que atingiu as relações humanas, desumanizando-as e, de outro, repre- senta um grito de esperança, já que é possível compartilhar novas visões de mundo, nas quais esse indivíduo supere e encontre a emancipação, mas não sem levar em conta a sua condição de alienação total que hora o faz mergulhar e reproduzir as estruturas sociais do capitalismo.
E não é por outro motivo na insistência de que a mercadoria assumiu a centralidade do mundo, levando o indivíduo a uma projeção invertida de si, posicionando sua imagem nas relações humanas, assim determinadas pelo poder hierárquico.

            III
Uma virtude, dentre tantas outras, parece ter dado força a este homem atual, a objetividade e a praticidade para viver nos meandros da sociedade da mercadoria, estabelecendo suas estratégias sociais que se tornaram, por outro lado, estratégias psicológicas bem delineadas e sobretudo aplaudidas por consultores, administradores, gestores e psicólogos do trabalho. Esse indivíduo deve consolidar suas estratégias a fim de se conformar o mundo das relações que o levam à sua própria preservação, assim “Ele reage continuamente ao que percebe sobre si, não só consciente- mente mas com o seu ser inteiro, imitando os traços e atitudes de todas as coletividades que o rodeiam (...) forçam um conformismo mais estrito, uma entrega mais radical à completa assimilação, do que qualquer pai ou professor poderia impor no século XIX”[5]. Obedece de um modo a preservar suas próprias posições, e o que parece ser mais interessante, na verdade, quase um verdadeiro milagre, é este conformismo biológico, instantâneo, que não prescinde de uma educação formal, a estrutura social jê por si engendra essa edu- cação.
Tem-se a impressão de que o grande personagem impessoal de Nelson Rodrigues vingou na história, o  cretino fundamen- tal parece ter conquistado seu lugar no mundo capitalista, mesmo que para isto foi preciso criá-lo a fórceps. Paradoxal é a postura desse cretino, que imagina ter o poder sobre o mundo e, de outro lado, não se apercebe das engrenagens que o trituram diariamente e isto se revela no fato de que “o capital domina a consciência e, por conseguinte, o comportamento das pessoas, e finalmente o valor de troca em seus bolsos mediante a empatia do servir; portanto, o poder visto como mero servidor torna-se realmente dominante”. (p. 80, Crítica da estética da mercadoria) Não deixa de ser emblemático que ele tem algum poder, talvez o de manter refém sua própria consciência, de seqüestrar seu próprio corpo em nome da sobrevivência, que aliás parece ter orgulho em vociferar aos quatro cantos sua atitude obediente ao modelo atual.
Muitos criticam efusivamente a expressão mais visível desse cretino homérico, tratando de denunciar o chamado indi-
vidualismo, mas esta hipocrisia não leva em conta que este individualista se torna um ser de traços egoístas devido à impossibilidade de compreender a práxis como elemento entre teoria e prática, em sentido dialético, que nos leva a um aprofundar do senso comum. Os pequeno-burgueses, com suas teorias morais alicerçadas na religião cristã (de vários naipes e cores), insistem em dizer que o problema não passa de perversão individual, que a solução estaria numa solidariedade, na fraternidade que só as religiões teriam possibilidade de realizar.
Por outro lado, sua práxis está totalmente em conformidade com as estruturas lógicas que são impostas pela forma-mercadoria, mesmo assim, a relação com as coisas é direta, imediata e toda forma de mediação não passa de um substrato que nos leva a dizer, em outras palavras, que a coisa manifestada e a o que se pensa acerca desta é linguisticamente o mesmo. Há uma consciência impregnada nesse processo, pois “Com efeito, o homem comum corrente se encontra em uma relação direta e imediata com as coisas – relação que não pode deixar de ser consciente –, mas nela a consciência não distingue ou separa a prática como seu objeto próprio, para que se apresente diante dela em estado teórico, isto é, como objeto do pensamento”[6]. Daí podermos inferir, com certa licitude, o fato da imagem corresponder às relações sociais. O estrategista moderno sabe exatamente a quem deve obedecer e de que forma deve fazê-lo, sua preservação é, concomitantemente, a preservação do próprio sistema. Isto parece um paradoxo, mas é no interior dele que esse sujeito tornado cretino a cada instância de sua existência, permanece como que a esperar, ainda, a possibilidade de realização.

O mito da realidade que se apresenta sem qualquer necessidade de argumentação ou explicação, a vida estabelecida em conformidade, a conformação diríamos, absoluta, a necessidade de preservação a todo custo, o imperativo produtivo para o consumo, a técnica que deve ser adquirida a fim de que este cretino seja útil à empresa, mesmo que intimamente permaneça a insegurança material e espiritual, todos esses elementos caracterizam parte fundamental da condição do desse indivíduo. Trata-se, então, de elaborar mecanismos de reação a uma realidade da qual não se tem muito claro o que ela é, mas que, de alguma forma, atinge ca- da qual em sua singularidade. A singularidade afeta o indivíduo na sua mais íntima realidade, ao mesmo tempo, toca-lhe o corpo, a sensação, a percepção, a intuição, toca-lhe a consciência, toca-lhe na dor e no prazer, enfim este indivíduo sente as agruras de um mundo que lhe é adverso, perverso na sua condição de realização, no entanto, ainda trafega por meandros nos quais permanece com a convicção de que há possibilidades, mas algo não corresponderia às suas expectativas, estas deverão se cumprir se, por ventura, houver uma adequação, diríamos, uma harmonização entre o que o sistema exige e o que o indivíduo deve fazer para se adaptar perfeitamente.
Se formos levar em conta a relação entre o sistema e o indivíduo, podemos observar que este é instado continuamente a se adequar ao modelo vigente, cabendo-lhe mudar quantas vezes for necessário para encontrar o trilho certo, no qual realizará suas vontades. Os desejos desse indivíduo somente poderão ser satisfeitos na medida em que souber equilibrá-los às regras do capitalismo, dito de outra forma, é neste contexto que surge a necessidade imperiosa de configurar uma imagem à forma-mercadoria, na sua totalidade. Uma imagem que é portadora de conteúdos, e que são formalmente instituídos no comportamento dos indivíduos. Por outro lado, uma imagem que fugiu ao controle e se apresenta como reprodução esquemática das estruturas da produção de valor. E é por isso que ele se sente só no meio de um turbilhão de imposições, sendo coagido e recebendo, por parte de um senhor absoluto, o juízo do que deve ser feito para alcançar com méritos, o objetivo supremo dessa sociedade.
O engano nesse processo é que se há algo de utópico trata-se do capitalismo em si. Nada há no capitalismo que nos indique que será capaz de oferecer os instrumentos para a realização do ser humano na sua totalidade, sua utopia reside em suas contradições internas. Esse indivíduo que tanto faz, que tanto luta para se harmonizar ao sistema, jamais poderá fazê-lo, jamais encontrará sua paz, jamais haverá a harmonia entre si e a forma-mercadoria, bastando a ele, tão-somente, continuar a ser explorado, sodomizado, torturado até o fim de seus dias, a não ser que encontre meios para emancipar-se. Entretanto, esses meios não se darão por mágica, por voluntarismo, ou por meio de conversões moral-religiosas, mas por meio de ações entre os próprios indivíduos, já que estes são os que podem subverter a lógica da estrutura da forma-mercadoria, podem, contrariamente a todas as determinações e determinismos, romper e minar a realidade em que se encontram. 
Voltemos à sua consciência, ela está sobrecarregada pelos sentidos imediatos, vê, toca, cheira, sente toda sorte de emanações e exortações que lhe chegam do mundo, mas este mundo não é isento, um todo sem qualquer intencionalidade. O mundo está composto por seus símbolos que são a expressão de um processo de relações, e em todas as relações, em todos os momentos, há um elemento que as coloca em é de igualdade, uma linguagem comum, uma moeda de troca com a qual todos podem se corresponder, que é a mercadoria. Por conseguinte, sua moral pequeno-burguesa se espalha por todas as relações de sua vida social, baseando-se nessa complexa estrutura que penetra todas as formações sociais.

Sua objetividade é seu orgulho, a virtude atual se condensa na capacidade de obedecer às ordens de uma estrutura cuja face de dominação é sem um dono explícito, obedece como um reprodutor automático que se orgulha daquilo que lhe foi “ofertado” ao longo de sua penosa carreira pelos meandros do capitalismo, sentindo-se realizado, como quem cumpriu sua missão na face da terra, missão carregada de moral, de valor religioso, de imperiosa lei do mercado. “Essa atitude natural baseia-se em ver a atividade prática como um simples dado que não requer explicação”[7] e nada parece requer qualquer explicação de cunho crítico-reflexivo, apenas as necessárias úteis, axiomáticas, para a manutenção do  emprego, para a ela- boração da estratégia para sobreviver no cotidiano. Qualquer forma até mesmo de possibilidade de romper com o senso-comum a fim de se perguntar sobre as verdadeiras razões da alienação, não ocorre, e a consciência se reduz a um amontoado de impressões, sensações e modelos que são seguidos ad eternum pelo indivíduo – valores religiosos anacrônicos, moral sexual da autopunição, cinismo, preconceitos, competição como virtude, apropriação capitalista, etc. – e nada se apresenta como um vestígio, por mínimo que seja, para romper com a mesmice social e chacoalhar este indivíduo para ao menos possa refletir sobre sua condição.
Não deixa de haver reflexão sobre sua condição, no entanto, ela se reduz a tentar explicar formalmente as razões pelas quais há deficiência para alcançar os objetivos do próprio sistema, isto é, seu nexo com a realidade está exatamente para aparar arestas a fim de cumprir as regras do jogo; não passa pela sua consciência, questionar o jogo, apenas manter-se em condições para continuar a jogá-lo, por isso, “Seus nexos com esse mundo e consigo mesma (a consciência) aparecem diante dela em um plano ateorético. Não sente a necessidade de rasgar a cortina de preconceitos, hábitos mentais e lugares comuns sobre a qual projeta seus atos práticos”[8].


 
IV
E quanto mais se vê o pensador compromissado em interpelar os indivíduos e intervir sobre essa realidade absurdamente insensata, mais sente-se enredado pelas formas mentais que atingem a quase totalidade do universo social, cujas formas de mentalidade estão organizadas como se fossem uma única estrutura impessoal. Dificilmente poderíamos penetrar na consciência desse homem, do cretino fundamental sem que nos sentíssemos aprisionados e com a nítida impressão de que a realidade assumira novos contornes em torno à mentira social reinante, inclusive criando a sensação de impotência recorrente. A utilidade desse pensamento está no fato de que serve totalmente ao modo de vida que a mercadoria impõe a todos indistintamente. Isto não é suficiente, é preciso então imaginar um mundo para além desse cretino social, da apatia política que o reveste, da condição insana na qual se meteu. Não é um único indivíduo, mas um amontoado que se torna uma multidão.
Ainda assim, devemos ter em mente que há um tensionamento entre a prática e a teoria. Muitos cínicos exigirão uma alternativa. Mas o crítico social deve ter em mente que há limites nesse processo crítico-reflexivo, mas não deve deixar de apontar a realidade ou, ao menos, dar à realidade uma interpretação, que seja a representação a partir de elementos razoáveis sobre ela e isto implica que, de um lado, o intelectual está impregnado dessa mesma realidade, de outro, é mister abstraí-la para que ofereça elementos que possam respondê-la com o intuito de não se mostrar além ou aquém desse contexto.
Alternativas são possíveis? Alternativas existem? Sim, de modo pragmático, sempre haverá alternativas, mas aqui é imprescindível não mergulhar numa espécie de profetismo social, político ou ideológico. Sem enfrentar o capitalismo não será possível superar a condição do cretino social. Uma espécie de guerrilha de consciência mesclada com um pacifismo que enfrente não a violência endêmica do sistema, revelada pelas guerras e pelo controle hierárquico, devemos nos tornar pacifistas contra a forma-mercadoria diante da totalidade das relações sociais. O problema crucial a ser enfrentado é que o processo da produção se estendeu por toda a arquitetura social, devemos penetrar, de alguma forma, as organizações e estruturas produtivas, desburocratizar tais articulações, desmer -cantilizar as relações hierárquicas, de forma que a guerrilha e o pacifismo estejam em relação dialética, no interior dessas relações de poder, cuja base é o do trabalho, da produção, que se espalha pelos ambientes da educação, da família, do Estado, dos institutos de controle, etc. e dessa forma, é preciso minar essas relações até que o sistema entre em colapso. Não sejamos ingênuos no sentido de acreditar que ao minar essas relações o capitalismo implodiria, uma vez que temos de considerar aquelas forças que imprimem ao capitalismo a sua contradição, sua decadência e seu colapso, do ponto de vista lógico. Assim, devemos atuar dialeticamente no interior do sistema e, de outro lado, estarmos atentos às fissuras do sistema.   


[1] RODRIGUES, Nelson. O óbvio ululante. 6. ed., São Paulo: Cia das Letras, 1996.
[2] BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 42.
[3] JAPPE, Anselm. Guy Debord. Tradução de Iraci D. Poleti e Carla da Silva Pereira. Lisboa: Antígoca, 2008, p. 17.
[4] HAUG, Wolfgang Fritz Haug. Crítica da estética da mercadoria. Tradução de Erlon José Paschoal. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 79.
[5] HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: CENTAURO, 2002, p. 146.
[6] VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO; São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 32
[7] Ibidem, p. 31.
[8] Idem, p. 31.
Postado por Atanasio Mykonios às 22:06:00 

JOSÉ FANHA - A LADEIRA

A LADEIRA
José fanha
13 de Dezembro de 2012

       Era uma vez dois homens. Um era alto, outro baixo. Um era gordo, outro magro. Um moreno, o outro ruivo. Um tinha a voz muito grossa e outro uma borbulha na ponta do nariz. Um chamava-se Manuel Francisco e o outro Francisco Manuel. E muito mais coisas poderia dizer de cada um deles. Mas, o fundamental, é que eram muito diferentes um do outro. Só numa coisa se assemelhavam: ambos eram tremendamente teimosos.
           Na terra onde viviam havia uma ladeira íngreme, inclinada, cheia de pedras e calhaus. Uma ladeira daquelas que a gente só sobe ou desce quando não pode deixar de ser.
         Um dia, um dos homens ia a subir a ladeira quando o outro vinha a descê-la. Como é natural, encontraram-se a meio. Bem… A meio, a meio, exactamente a meio, não tenho a certeza se foi. Talvez tenha sido um bocadinho mais para cima ou um bocadinho mais para baixo. Para a nossa história esse pormenor não tem grande importância e, por isso, vamos fazer de conta que foi a meio.
        Mais ou menos a meio da ladeira, os dois homens encontraram-se, pararam à frente um do outro e desataram a discutir. Um ia a subir e, por isso, achava que a ladeira era uma subida. O outro vinha a descer e, pelo contrário, garantia que se tratava de uma descida.
       Sem chegar a acordo, sentaram-se ali mesmo no chão para tirar a questão a limpo. Quem os conhecesse, sabendo que eram homens de palavra fácil, capazes de inventar sólidas razões e grandes argumentos, logo via que aquela discussão ia demorar. E demorou.
          Passaram-se sete dias e sete noites e a discussão não parava. Veio a Lua e foi--se o Sol, veio o Sol e foi-se a Lua e os dois homens a discutir. Nem o frio, nem o calor, nem a chuva, os distraíram. Continuavam na mesma. Para um, aquela ladeira era uma subida porque subia de baixo para cima. Para o outro, era uma descida porque descia de cima para baixo.
        A discussão continuou e continuou. À sétima noite começou a soprar um vento muito forte. Um vento tão forte e violento que arrancava terras, árvores e pedras e as atirava de um sítio para outro. Um vento daqueles capazes de trabalhar lentamente, séculos e séculos a fio, para mudar a face da Terra e transformar montes em covas fundas e buracos de meter medo nas mais altas montanhas.
        O tempo passou. O vento mexeu com tudo. Mudou a paisagem. Transformou o mundo. Só os dois homens continuavam sentados no meio da ladeira sem darem por nada do que acontecia à sua volta. Estavam tão preocupados, cada um, em ganhar a discussão, que não sentiram nem a chuva na pele, nem o frio nos ossos, nem o sol na moleirinha.
       Passaram-se sete mil noites e sete mil dias, os homens a discutir e o vento a trabalhar.
      A ladeira, a pouco e pouco, ia ficando diferente. A parte mais alta cada vez menos alta, e a parte mais baixa a crescer sem parar à custa de entulho, areia, calhaus e pedrinhas que a tornavam cada vez menos baixa.
      Um belo dia, a parte de baixo e a parte de cima da ladeira ficaram iguais, da mesma altura e, portanto, a ladeira desapareceu. A terra ficou direitinha, lisa, uma planície que se estendia até perder de vista.
      O vento, sem mais nada que fazer ali, foi trabalhar para outro lado. Os dois homens que, como eu já disse, eram muito teimosos, continuavam a discutir se a ladeira era uma subida que se descia ou uma descida que se subia.
      A certa altura, olharam em volta, para um lado e para outro, até onde a vista podia alcançar. Aperceberam-se então que a ladeira tinha desaparecido. Olharam um para o outro, levantaram-se, cumprimentaram-se e, cheios de orgulho, afastaram-se cada um em sua direcção, ambos seguros de que tinham ganho a discussão.

José Fanha
A noite em que a noite não chegou
Porto, Campo das Letras, 2001