TANGERINE-GIRL
CONTO
DE RACHEL DE QUEIROZ
FONTE:
ÍTALO MORICONI(ORG.)
LIVRO: OS 100 MELHORES CONTOS BRASILEIROS DO SÉCULO
EDITORA:
R. J., OBJETIVA, 2001
PGS.
159 A 164
De
princípio a interessou o nome da aeronave: não “zepelim” nem dirigível, ou
qualquer outra coisa antiquada; o grande fuso de metal brilhante chamava-se
modernissimamente blimp. Pequeno como um brinquedo, independente, amável. A
algumas centenas de metros da sua casa ficava a base aérea dos soldados
americanos e o poste de amarração dos dirigíveis. E de vez em quando eles
deixavam o poste e davam uma volta, como pássaros mansos que abandonassem o
poleiro num ensaio de voo. Assim, de começo, aos olhos da menina, o blimp
existia como uma coisa em si — como um animal de vida própria; fascinava-a como
prodígio mecânico que era, e principalmente ela o achava lindo, todo feito de
prata, igual a uma joia, librando-se majestosamente pouco abaixo das nuvens.
Tinha coisas de ídolo, evocava-lhe um pouco o gênio escravo de Aladim. Não
pensara nunca em entrar nele; não pensara sequer que pudesse alguém andar
dentro dele. Ninguém pensa em cavalgar uma águia, nadar nas costas de um
golfinho; e, no entanto, o olhar fascinado acompanha tanto quanto pode águia e
golfinho, numa admiração gratuita — pois parece que é mesmo uma das virtudes da
beleza essa renúncia de nós próprios que nos impõe, em troca de sua
contemplação pura e simples.
Os
olhos da menina prendiam-se, portanto, ao blimp sem nenhum desejo particular,
sem a sombra de uma reivindicação. Verdade que via lá dentro umas cabecinhas
espiando, mas tão minúsculas que não davam impressão de realidade — faziam
parte da pintura, eram elemento decorativo, obrigatório como as grandes letras
negras U. S. Navy gravadas no bojo de prata. Ou talvez lembrassem aqueles
perfis recortados em folha que fazem de chofer nos automóveis de brinquedo.
O
seu primeiro contato com a tripulação do dirigível começou de maneira puramente
ocasional. Acabara o café da manhã; a menina tirara a mesa e fora à porta que
dá para o laranjal, sacudir da toalha as migalhas de pão. Lá de cima um tripulante
avistou aquele pano branco tremulando entre as árvores espalhadas e a areia, e
o seu coração solitário comoveu-se. Vivia naquela base como um frade no seu
convento — sozinho entre soldados e exortações patrióticas. E ali estava,
juntinho ao oitão da casa de telhado vermelho, sacudindo um pano entre a mancha
verde das laranjeiras, uma mocinha de cabelo ruivo. O marinheiro agitou-se todo
com aquele adeus. Várias vezes já sobrevoara aquela casa, vira gente embaixo
entrando e saindo; e pensara quão distantes uns dos outros vivem os homens,
quão indiferentes passam entre si, cada um trancado na sua vida. Ele estava
voando por cima das pessoas, vendo-as, espiando-as, e, se algumas erguiam os
olhos, nenhuma pensava no navegador que ia dentro; queriam só ver a beleza
prateada vogando pelo céu.
Mas
agora aquela menina tinha para ele um pensamento, agitava no ar um pano, como
uma bandeira; decerto era bonita — o sol lhe tirava fulgurações de fogo do
cabelo, e a silhueta esguia se recortava claramente no fundo verde-e-areia. Seu
coração atirou-se para a menina num grande impulso agradecido; debruçou-se à
janela, agitou os braços, gritou: “Amigo! Amigo!”— embora soubesse que o vento,
a distância, o ruído do motor não deixariam ouvir-se nada. Ficou incerto se ela
lhe vira os gestos e quis lhe corresponder de modo mais tangível. Gostaria de
lhe atirar uma flor, uma oferenda. Mas que podia haver dentro de um dirigível
da Marinha que servisse para ser oferecido a uma pequena? O objeto mais
delicado que encontrou foi uma grande caneca de louça branca, pesada como uma
bala de canhão, na qual em breve lhe iriam servir o café. E foi aquela caneca
que o navegante atirou; atirou, não: deixou cair a uma distância prudente da
figurinha iluminada, lá embaixo; deixou-a cair num gesto delicado, procurando
abrandar a força da gravidade, a fim de que o objeto não chegasse sibilante
como um projétil, mas suavemente, como uma dádiva.
A
menina que sacudia a toalha erguera realmente os olhos ao ouvir o motor do
blimp. Viu os braços do rapaz se agitarem lá em cima. Depois viu aquela coisa
branca fender o ar e cair na areia; teve um susto, pensou numa brincadeira de
mau gosto — uma pilhéria rude de soldado estrangeiro. Mas quando viu a caneca
branca pousada no chão, intacta, teve uma confusa intuição do impulso que a
mandara; apanhou-a, leu gravadas no fundo as mesmas letras que havia no corpo
do dirigível: U. S. Navy. Enquanto isso, o blimp, em lugar de ir para longe,
dava mais uma volta lenta sobre a casa e o pomar. Então a mocinha tornou a
erguer os olhos e, deliberadamente dessa vez, acenou com a toalha, sorrindo e
agitando a cabeça. O blimp fez mais duas voltas e lentamente se afastou — e a
menina teve a impressão de que ele levava saudades. Lá de cima, o tripulante
pensava também — não em saudades, que ele não sabia português, mas em qualquer
coisa pungente e doce, porque, apesar de não falar nossa língua, soldado
americano também tem coração.
Foi
assim que se estabeleceu aquele rito matinal. Diariamente passava o blimp e
diariamente a menina o esperava; não mais levou a toalha branca, e às vezes nem
sequer agitava os braços: deixava-se estar imóvel, mancha clara na terra
banhada de sol. Era uma espécie de namoro de gavião com gazela: ele, fero
soldado cortando os ares; ela, pequena, medrosa, lá embaixo, vendo-o passar com
os olhos fascinados. Já agora, os presentes, trazidos de propósito da base, não
eram mais a grosseira caneca improvisada; caíam do céu números da Life e da
Time, um gorro de marinheiro e, certo dia, o tripulante tirou do bolso o seu
lenço de seda vegetal perfumado com essência sintética de violetas. O lenço
abriu-se no ar e veio voando como um papagaio de papel; ficou preso afinal nos
ramos de um cajueiro, e muito trabalho custou à pequena arrancá-lo de lá com a
vara de apanhar cajus; assim mesmo ainda o rasgou um pouco, bem no meio.
Mas
de todos os presentes o que mais lhe agradava era ainda o primeiro: a pesada
caneca de pó de pedra. Pusera-a no seu quarto, em cima da banca de escrever. A
princípio cuidara em usá-la na mesa, às refeições, mas se arreceou da zombaria
dos irmãos. Ficou guardando nela os lápis e canetas. Um dia teve idéia melhor e
a caneca de louça passou a servir de vaso de flores. Um galho de manacá, um
bogari, um jasmim-do-cabo, uma rosa menina, pois no jardim rústico da casa de
campo não havia rosas importantes nem flores caras.
Pôs-se
a estudar com mais afinco o seu livro de conversação inglesa; quando ia ao
cinema, prestava uma atenção intensa aos diálogos, a fim de lhes apanhar não só
o sentido, mas a pronúncia. Emprestava ao seu marinheiro as figuras de todos os
galãs que via na tela, e sucessivamente ele era Clark Gable, Robert Taylor ou
Cary Grant. Ou era louro feito um mocinho que morria numa batalha naval do
Pacífico, cujo nome a fita não dava; chegava até a ser, às vezes, careteiro e
risonho como Red Skelton. Porque ela era um pouco míope, mal o vislumbrava,
olhando-o do chão: via um recorte de cabeça, uns braços se agitando; e,
conforme a direção dos raios do sol, parecia-lhe que ele tinha o cabelo louro
ou escuro.
Não
lhe ocorria que não pudesse ser sempre o mesmo marinheiro. E, na verdade, os
tripulantes se revezariam diariamente: uns ficavam de folga e iam passear na
cidade com as pequenas que por lá arranjavam; outros iam embora de vez para a
África, para a Itália. No posto de dirigíveis criava-se aquela tradição da
menina do laranjal. Os marinheiros puseram-lhe o apelido de “Tangerine-Girl”.
Talvez por causa do filme de Dorothy Lamour, pois Dorothy Lamour é, para todas
as forças armadas norte-americanas, o modelo do que devem ser as moças morenas
da América do Sul e das ilhas do Pacífico. Talvez porque ela os esperava sempre
entre as laranjeiras. E talvez porque o cabelo ruivo da pequena, quando
brilhava à luz da manhã, tinha um brilho acobreado de tangerina madura. Um a
um, sucessivamente, como um bem de todos, partilhavam eles o namoro com a
garota Tangerine. O piloto da aeronave dava voltas, obediente, voando o mais
baixo que lhe permitiam os regulamentos, enquanto o outro, da janelinha, olhava
e dava adeus.
Não
sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a ideia de atirar um bilhete.
Talvez pensassem que ela não os entenderia. Já fazia mais de um mês que
sobrevoavam a casa, quando afinal o primeiro bilhete caiu; fora escrito sobre
uma cara rosada de rapariga na capa de uma revista: laboriosamente, em letras
de imprensa, com os rudimentos de português que haviam aprendido da boca das
pequenas, na cidade: “Dear Tangeríne-Gírl. Please você vem hoje (today) base X.
Dancing, show. Oito horas P.M.” E no outro ângulo da revista, em enormes
letras, o “Amigo”, que é a palavra de passe dos americanos entre nós.
A
pequena não atinou bem com aquele “Tangerine-Girl”. Seria ela? Sim, decerto… e
aceitou o apelido, como uma lisonja. Depois pensou que as duas letras, do fim:
“P.M.”, seriam uma assinatura. Peter, Paul, ou Patsy, como o ajudante de Nick
Carter? Mas uma lembrança de estudo lhe ocorreu: consultou as páginas finais do
dicionário, que tratam de abreviaturas, e verificou, levemente decepcionada,
que aquelas letras queriam dizer “a hora depois do meio-dia”.
Não
sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a ideia de atirar um bilhete.
Talvez pensassem que ela não os entenderia. Já fazia mais de um mês que
sobrevoavam a casa, quando afinal o primeiro bilhete caiu; fora escrito sobre
uma cara rosada de rapariga na capa de uma revista: laboriosamente, em letras
de imprensa, com os rudimentos de português que haviam aprendido da boca das
pequenas, na cidade: “Dear Tangeríne-Gírl. Please você vem hoje (today) base X.
Dancing, show. Oito horas P.M.” E no outro ângulo da revista, em enormes
letras, o “Amigo”, que é a palavra de passe dos americanos entre nós.
A
pequena não atinou bem com aquele “Tangerine-Girl”. Seria ela? Sim, decerto… e
aceitou o apelido, como uma lisonja. Depois pensou que as duas letras, do fim:
“P.M.”, seriam uma assinatura. Peter, Paul, ou Patsy, como o ajudante de Nick
Carter? Mas uma lembrança de estudo lhe ocorreu: consultou as páginas finais do
dicionário, que tratam de abreviaturas, e verificou, levemente decepcionada,
que aquelas letras queriam dizer “a hora depois do meio-dia”.
Não
pudera acenar uma resposta porque só vira o bilhete ao abrir a revista, depois
que o blimp se afastou. E estimou que assim o fosse: sentia-se tremendamente
assustada e tímida ante aquela primeira aproximação com o seu aeronauta. Hoje
veria se ele era alto e belo, louro ou moreno. Pensou em se esconder por trás
das colunas do portão, para o ver chegar – e não lhe falar nada. Ou talvez
tivesse coragem maior e desse a ele a sua mão; juntos caminhariam até a base,
depois dançariam um fox langoroso, ele lhe faria ao ouvido declarações de amor
em inglês, encostando a face queimada de sol ao seu cabelo. Não pensou se o
pessoal de casa a deixaria aceitar o convite. Tudo ia-se passando como num sonho
— e como num sonho se resolveria, sem lutas nem empecilhos.
Muito
antes do escurecer, já estava penteada, vestida. Seu coração batia, batia
inseguro, a cabeça doía um pouco, o rosto estava em brasas. Resolveu não
mostrar o convite a ninguém; não iria ao show; não dançaria, conversaria um
pouco com ele no portão. Ensaiava frases em inglês e preparava o ouvido para as
doces palavras na língua estranha. Às sete horas ligou o rádio e ficou
escutando languidamente o programa de swings. Um irmão passou, fez troça do
vestido bonito, naquela hora, e ela nem o ouviu. Às sete e meia já estava na
varanda, com o olho no portão e na estrada. Às dez para as oito, noite fechada
já há muito, acendeu a pequena lâmpada que alumiava o portão e saiu para o
jardim. E às oito em ponto ouviu risadas e tropel de passos na estrada,
aproximando-se.
Com
um recuo assustado verificou que não vinha apenas o seu marinheiro enamorado,
mas um bando ruidoso deles. Viu-os aproximarem-se, trêmula. Eles a avistaram,
cercaram o portão — até parecia manobra militar —, tiraram os gorros e foram se
apresentando numa algazarra jovial.
E,
de repente, mal lhes foi ouvindo os nomes, correndo os olhos pelas caras
imberbes, pelo sorriso esportivo e juvenil dos rapazes, fitando-os de um em um,
procurando entre eles o seu príncipe sonhado — ela compreendeu tudo. Não
existia o seu marinheiro apaixonado — nunca fora ele mais do que um mito do seu
coração. Jamais houvera um único, jamais “ele” fora o mesmo. Talvez nem sequer
o próprio blimp fosse o mesmo…
Que
vergonha, meu Deus! Dera adeus a tanta gente; traída por uma aparência
enganosa, mandara diariamente a tantos rapazes diversos as mais doces mensagens
do seu coração, e no sorriso deles, nas palavras cordiais que dirigiam à
namorada coletiva, à pequena Tangerine-Girl, que já era uma instituição da base
— só viu escárnio, familiaridade insolente… Decerto pensavam que ela era também
uma dessas pequenas que namoram os marinheiros de passagem, quem quer que seja…
decerto pensavam… Meu Deus do Céu!
Os
moços, por causa da meia-escuridão, ou porque não cuidavam naquelas nuanças
psicológicas, não atentaram na expressão de mágoa e susto que confrangia o
rostinho redondo da amiguinha. E, quando um deles, curvando-se, lhe ofereceu o
braço, viu-a com surpresa recuar, balbuciando timidamente:
—
Desculpem… houve engano… um engano…
E
os rapazes compreenderam ainda menos quando a viram fugir, a princípio
lentamente, depois numa carreira cega. Nem desconfiaram que ela fugira a
trancar-se no quarto e, mordendo o travesseiro, chorou as lágrimas mais amargas
e mais quentes que tinha nos olhos.
Nunca
mais a viram no laranjal; embora insistissem em atirar presentes, viam que eles
ficavam no chão, esquecidos — ou às vezes eram apanhados pelos moleques do
sítio.
FIM
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