A CHOCA
Trindade Coelho, Os Meus Amores, Lisboa, 1891
Aquela tarde, a Choca recolhera ao poleiro
mais cedo do que o costume. Atrás dela, lembrando doze novelitos de ouro a
mexerem-se como por milagre, os doze filhinhos tinham seguido a mãe, – e lá
dentro, qual deles com mais dificuldade, um a um tinham-se encarrapitado no
velho cesto de palha onde faziam a cama, aninhando-se, o melhor que puderam,
debaixo da asa materna.
Eles mesmos tinham estranhado recolher tão
cedo aquela tarde, os pequenitos; – mas, cá fora, o rancho das outras galinhas
atribuía isso à doença da Choca, porque a pobre, com o gogo, metia dó com
tamanho sofrer! Um pouco aterradas, tinham assistido havia três dias a essa
operação que a Choca sofrera, e que certas delas, na grei, sabiam muito
dolorosa. A pena que lhe espetara no pescoço a velha que cuidava delas, fora o
mesmo que nada, – e se mal estava, pior ficara, a pobre! Ainda a trazia, essa
pena, mas quase seca porque não purgava; e entretanto, sem bem lhe fazer,
afligia-a como se fosse um estigma, – tanto ou mais que a própria doença...
Por isso recolhera cedo, a Choca; deixando
fora, pelo terreiro, gozando ainda o seu resto de tarde, o rancho das
companheiras.
Ai, eram bem felizes, essas! Pelo buraco do
poleiro, sentia-as agora cacarejar, – e não tardaria que o milho do recolher,
que a velha, todas as tardes, trazia para elas no seu mandil, alvoroçasse no
prazer do costume, em que por via de um grão, às vezes, havia entre todas rixas
alegres, o bando das companheiras...
Só ela, doente, quase já não sabia o que era
comer; – e ainda essa tarde, morta de sede, invejara a gotinha de água que um
ou outro dos seus pintainhos, beberricando na pia, deixava, depois de saciado,
cair do biquinho como uma pérola.
Mas nem comer nem beber, ela, que era muita a
gosma, e não podia! E pelo que tocava a cacarejar, nem o bastante para a
ouvirem os filhos, para os admoestar, para os dirigir, – quanto mais para uma
dessas tiradas que outrora lhe haviam feito, ao romper da manhã, a sua fama de
cantadeira! Galos que ela apaixonara, ciúmes em que fizera arder tantas rivais,
ralhos, intrigas, combates, – como tudo isso ia longe, agora! Nos bebedouros,
ela mesma se namorara da sua figura esbelta, muitas vezes; – e que o não
adivinhara na devoção dos galos, de tantos que a tinham amado, e que ao aclarar
das manhãs, todos os dias, lhe declaravam o seu amor dos poleiros à roda, –
adivinhara-o na inveja das outras, esse prestígio mágico da sua beleza...
Certo galo, sobretudo, agora já velho, – e,
como ela, agora já também sem entusiasmos, dir-se-ia que o enfeitiçara; e agora
mesmo, vendo-a recolher cedo com a ninhada, esse velho e trôpego apaixonado
(mas belo, ainda assim, na sua justa decrepitude) não tardara a recolher-se
também. Subtil, passara, sumira-se ao fundo na sombra densa; e erguendo um voo
pesado, sentira-o aninhar-se onde passava as noites, numa trave a um canto do
poleiro. Cansaço talvez da vida, talvez doença também, – quem lhe dizia a ela,
entretanto, que ele se não recolhera por a ver recolher, por a ver doente, por
um impulso de compaixão, que era agora, talvez, como a agonia do seu velho
amor?!
Pelo que respeitava às companheiras, as da
sua geração eram já poucas; e essas, como ela própria, mais saudosas da
mocidade, do que lembradas; e quanto às novas, muitas criara-as ela, – e,
sobretudo, não era já dela que tinham ciúmes...
De resto, ela mesmo era boa companheira; e
tirante algum fogacho de génio por amor dos filhos, se tinha de os proteger ou
se lhos ofendiam, até no comedouro era moderada e no bebedouro; – e muitos
pintainhos doutras ninhadas queriam-lhe como se fosse avó, e os frangos, uma
vez por outra, ela própria, de manhã, ensinava-os a cacarejar.
Ah, mas esse bom tempo ia passado! Já chocara
a ninhada com pouca saúde; e surpreendendo-se, às vezes, sem paciência para
aturar os filhos, ignorava se seria por isso, se por a verem talvez doente, que
eles mesmos, coitadinhos, pareciam às vezes também doentes!
...Entretanto, eles tinham-se aninhado todos,
o melhor que lhes fora possível, debaixo da asa materna; – e embora muito
enferma, ela era feliz, ainda assim, por ter tão quentes os seus pequeninos, –
e agora, por certo, todos a dormir e talvez sonhando..
AMOR MATERNO
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