13 de Dezembro de 2012
A música de Imani
Sheron Williams
Imani’s Music
New York, Atheneum BOOKS, 2002
Imani’s Music
New York, Atheneum BOOKS, 2002
Nascido
durante a época das plantações no fim do século XIX, o meu avô W. D. era um
homem do Era uma Vez, que morava no Aqui e Agora, porque a vida o tinha ali
colocado. Era conhecido em cinco condados como um contador de histórias que
conseguia levar um conto ao tapete. Vivia entre o Era uma Vez, o Aqui e Agora e
O Que Vai Vir. Eram pessoas como ele que mantinham a tradição viva.
W. D.
tinha uma velha bengala que levava para todo o lado. Dizia que tinha sido feita
com pranchas do navio de escravos que tinha trazido o seu avô. Achava que,
enquanto tivesse aquela bengala, nenhum navio de escravos teria algo a ver com
ele.
De
vez em quando, dava a volta à casa, arrastando a bengala pelo chão, desenhando
uma linha. Depois chamava-nos com a mão nodosa e íamos todos a correr para
dentro do círculo que ele traçara. Nesse espaço, W. D. atravessava o rio do
tempo como se este fosse uma mera poça de água da chuva. Com as suas primeiras
palavras e um cheirinho do ar da noite, entrávamos todos na terra do Era uma
Vez, como se fosse Aqui e Agora.
Isto
porque as pessoas são o que são e as coisas não mudam tanto quanto isso. Ainda
há quem queira ser amado, quem se case e tenha filhos. A fome ainda nos leva à
procura de comida, e enterrar as pessoas ainda faz os seus parentes chorar.
—
Tenham cuidado — advertia-nos, enquanto nos aproximávamos dele. — Não
molhem os pés no Rio do Tempo, atravessem com cuidado para a terra do Era uma
Vez.
Era uma vez um tempo em que não havia música no planeta. A música era uma iguaria tão cobiçada que os Antepassados a guardavam para si, e dela só comiam um bocadinho todos os dias. Estava guardada numa prateleira do céu nocturno, em taças enormes, negras e brilhantes. De vez em quando, uma rajada de vento ou uma tempestade abanava as taças, fazendo com que caísse um pouco de música na terra. Mas o mundo nunca soube o que perdia, porque todos se abrigavam. Todos menos Imani, uma criatura que adorava música.
Era uma vez um tempo em que não havia música no planeta. A música era uma iguaria tão cobiçada que os Antepassados a guardavam para si, e dela só comiam um bocadinho todos os dias. Estava guardada numa prateleira do céu nocturno, em taças enormes, negras e brilhantes. De vez em quando, uma rajada de vento ou uma tempestade abanava as taças, fazendo com que caísse um pouco de música na terra. Mas o mundo nunca soube o que perdia, porque todos se abrigavam. Todos menos Imani, uma criatura que adorava música.
Ao
contrário dos outros gafanhotos, Imani adorava que a chuva lhe caísse em cima.
De cada vez que havia uma tempestade, descobria que lhe tinha sido dado um
presente. Conseguia esfregar as patas traseiras numa folha de planta ou numa
tira de erva, e obter os sons mais maravilhosos.
Era algo
tão bom que não queria guardá-lo só para ele. Quando tocava, com alegria, numa
folha de palmeira ou de vinha, desejava que o resto do mundo pudesse partilhar
o seu presente.
Então,
numa noite especial em que tinha caído uma chuva suave, Imani escolheu uma tira
de erva do Serengeti para tocar. Fez uma vénia e dedicou a sua actuação aos
Antepassados. Tocou para o céu escuro durante horas. Tocou enquanto
interiormente entoava uma prece. Quando a última nota se fez ouvir, murmurou
com toda a fé de que era capaz:
— Por
favor, Antepassados, dêem música ao mundo. Quando os Antepassados olharam para baixo e ouviram as primeiras notas da
canção de Imani, viram quão feliz ele estava.
— É
um gafanhoto músico. Devíamos dar-lhe música. Rindo e dançando tão ruidosamente que balançavam os céus e a terra, verteram
toda a música que tinham nas taças negras. Um banho de melodias caiu sobre
Imani, e o resto da terra apanhou as restantes como uma esponja apanha a água.
Havia
agora música por todo o lado e em tudo. O dom da música foi atribuído a todos
os gafanhotos, embora só pudessem tocar com as pernas, não com pétalas ou
ervas.
Também foi atribuída aos leões e às girafas; às serpentes e aos pássaros (estes tiveram direito a uma grande parte porque estavam a voar no momento em que a música caiu); às árvores, às montanhas, aos cactos e às pessoas! Se não acreditam, batam, agitem ou piquem com gentileza tudo o que há na terra e ouçam a música a sair.
No início, as pessoas juntavam as suas vozes às canções de Imani. Depois, os músicos criaram instrumentos para tocar com ele, trazendo à superfície a música escondida nas canas, nas árvores, nas peles dos animais, no marfim, no cobre, no bronze, criando flautas, baterias, banjos, guitarras, xilofones, liras e harpas.
Também foi atribuída aos leões e às girafas; às serpentes e aos pássaros (estes tiveram direito a uma grande parte porque estavam a voar no momento em que a música caiu); às árvores, às montanhas, aos cactos e às pessoas! Se não acreditam, batam, agitem ou piquem com gentileza tudo o que há na terra e ouçam a música a sair.
No início, as pessoas juntavam as suas vozes às canções de Imani. Depois, os músicos criaram instrumentos para tocar com ele, trazendo à superfície a música escondida nas canas, nas árvores, nas peles dos animais, no marfim, no cobre, no bronze, criando flautas, baterias, banjos, guitarras, xilofones, liras e harpas.
Em
breve tudo se fazia ao som da música. Os camponeses faziam as colheitas ao som
dela. Os reis eram por ela embalados quando davam longos e pensativos passeios.
Os trabalhadores abatiam árvores e construíam aldeias ao som de canções. Os
amantes cantavam cantigas de amor. Os mercadores apregoavam as virtudes da sua
mercadoria. E os reinos saudavam a passagem do poder de geração em geração
através de instrumentos e de árias.
Imani procurava em todo o lado novas folhas que pudessem ser tocadas. Viajava por montanhas de dia e tocava na folhagem à noite. Lavradores, mercadores e pastores, atraídos pelas suas melodias, diziam-lhe por onde ir.
Imani procurava em todo o lado novas folhas que pudessem ser tocadas. Viajava por montanhas de dia e tocava na folhagem à noite. Lavradores, mercadores e pastores, atraídos pelas suas melodias, diziam-lhe por onde ir.
Um
dia, um mercador de tecidos muito viajado, chamado Umoja, apontou-lhe o oeste e
disse-lhe:
— As
ervas mais altas crescem perto da orla do mar. Vai e toca--as! Os oceanos ecoam os seus sons. Toca devagar. As ondas hão--de levar as tuas canções através das
águas. Vem viajar comigo e guiar-te-ei.
Imani
seguiu o conselho do mercador e em breve se tornaram amigos. Umoja tecia por
profissão e tocava flauta por amor. As suas vozes misturavam-se belissimamente
e nos locais onde acampavam nunca estavam sozinhos.
Numa
manhã radiosa e cheia de luz, Imani e Umoja chegaram à costa. Aí, enormes
navios cantavam: cush, cush, cush. A voz da areia fazia-se ouvir sob os seus
pés: grish, grish, grish e as ondas faziam lap, lap, lap contra a praia. A
juntar-se à sua canção havia vozes que falavam línguas estranhas e ouvia-se o
som de cadeias metálicas: clink, clink, clink.
— Que
música estranha tocam estes elementos juntos — exclamou Imani. — Tenho de lhes
adicionar a minha voz.
Só que, exausto da viagem, decidiu dormir uma sesta e aconchegou-se no saco de Umoja, que era feito de tecido e corda.
Só que, exausto da viagem, decidiu dormir uma sesta e aconchegou-se no saco de Umoja, que era feito de tecido e corda.
Subitamente,
foi acordado pela algazarra das pessoas, pela canção das cadeias de metal, pelo
som das vagas do oceano, e pelos gritos de Umoja, que tinha sido apanhado numa
rede de muitas malhas. Não se sabe bem como, estavam ambos a bordo de um
daqueles navios. E o navio tinha levantado âncora.
Horrorizado,
Imani começou a chorar. Deixava para trás a sua terra, os seus amigos, a sua
família, e a sua amada relva do Serengeti! Havia mar por todo o lado! E o mar
cantava uma canção triste e estranha, acompanhada por cadeias de metal, por
ondas rumorejantes, e pelas vozes das pessoas. Secando as lágrimas, Imani
abraçou o conforto da sua música e cantou toda a noite, com afinco.
Através de um buraquinho minúsculo no chão do convés, Imani conseguia ver uma multidão de gente: homens, mulheres e crianças, todos amontoados e ligados por uma corrente comum. Eram os mercadores, lavradores e pastores que tinha encontrado nas suas viagens. Chamavam-no em KiSwahali, Yoruba, e em muitas outras línguas.
Através de um buraquinho minúsculo no chão do convés, Imani conseguia ver uma multidão de gente: homens, mulheres e crianças, todos amontoados e ligados por uma corrente comum. Eram os mercadores, lavradores e pastores que tinha encontrado nas suas viagens. Chamavam-no em KiSwahali, Yoruba, e em muitas outras línguas.
—
Gafanhoto, traz-nos água, temos sede!
—
Gafanhoto, traz-nos comida!
E
muitos rogavam:
—
Gafanhoto, diz à minha mãe para onde fui e que voltarei, se puder.
Ouvir
e ver o que se passava no porão do navio fez com que Imani deixasse de poder
cantar. Como poderia ele fazer o que lhe pediam? A própria mãe de Imani não
sabia onde ele estava. Naquele momento, Imani soube que o destino do seu povo
seria o seu destino e as lágrimas brotaram novamente dos seus olhos.
— Não
chores — pediu uma voz que vinha do porão. — As tuas lágrimas não podem
ajudar-nos.
Imani sentiu-se reconfortado, porque conhecia aquela voz. Era Umoja.
Imani sentiu-se reconfortado, porque conhecia aquela voz. Era Umoja.
— Ir
buscar água e comida para nós é-te impossível, pequenote. Mas podes dar-nos
esperança, podes dar-nos a tua música!
—
Darei! — prometeu Imani. — Precisais de música no sítio para onde ides. Pode
ser mesmo tudo o que vos resta.
Imani cantou com todos os bocadinhos de vegetação que encontrou no navio, desde as despensas às galés, da cabina do capitão à torre de vigia. Aprendeu canções novas. Embora as cantasse com tristeza, continuava a cantar.
Imani cantou com todos os bocadinhos de vegetação que encontrou no navio, desde as despensas às galés, da cabina do capitão à torre de vigia. Aprendeu canções novas. Embora as cantasse com tristeza, continuava a cantar.
Quando
o navio cessou de baloiçar e aportou finalmente a uma praia nova, Umoja e os
outros foram conduzidos em muitas direcções. Imani ficou sozinho. Fartou-se de
procurar, mas não encontrou milho-miúdo, sorgo, ou juncos. Nunca mais
conseguiria ouvir a música que a tira de erva do Serengeti produzia. Perguntou
a lavradores e pastores que ia encontrando, mas eles não o compreendiam.
Imani
atravessou a nova terra de lés a lés. Não deixou uma única casca de milho por
virar, em busca de sons novos que trouxessem esperança ao seu povo. Nunca
encontrou Umoja mas, quando encontrou uma ou duas das centenas de pessoas que
tinham viajado com eles, cantou-lhes as suas novas canções. Eles, por seu
turno, ensinaram estas canções a outros.
—
Enquanto outrora éramos vários povos, agora somos um só, e temos uma só língua
e uma só música. Temos de viver, trabalhar, amar, e confortar-nos mutuamente
nesta nova terra, unidos por novas canções.
E foi assim que aprenderam estas novas melodias. Às vezes, cantavam-nas com tristeza e saudade, mas nunca deixavam de cantar!
E foi assim que aprenderam estas novas melodias. Às vezes, cantavam-nas com tristeza e saudade, mas nunca deixavam de cantar!
Durante
as suas viagens, Imani conheceu uma gafanhota chamada Esperança, que traduziu o
nome dele para a sua língua e chamou-lhe Fé. Fé casou com Esperança e tiveram
muitos filhos, aos quais Fé passou o seu dom para cantar.
Embora
as ervas e vinhas desta nova pátria produzissem sons maravilhosos, não eram
iguais às de África. Quando Imani levava os filhos ao círculo dos contadores de
histórias, ia muitas vezes com eles até à terra do Era uma Vez e contava-lhe
contos da sua terra natal, das suas noites claras e da erva real do Serengeti.
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