A JANELA E A MONTANHA
António
Torrado
O coração das coisas
Porto, Edições Asa, 2004
O coração das coisas
Porto, Edições Asa, 2004
A
janela abria para a frente, para fora, para o ar lavado da montanha.
Quem
dormisse naquele quarto, ao saltar da cama, de manhã, abria a janela de dois
batentes como se estivesse a respirar fundo. Enchia os pulmões de ar e os olhos
de claridade. Era o primeiro exercício de ginástica.
Podia
ficar por aqui, de cotovelos sobre o parapeito, a apreciar a paisagem. Ou podia
voltar para dentro, com um pequeno arrepio de prazer.
A
janela, que abria para fora, até nem se importava que voltassem a fechá-la.
Tinha cumprido a sua missão. Dera, de longe, um primeiro abraço à montanha. Não
pedia mais.
Eram
muito amigas a montanha e a janela. Não podiam passar uma sem a outra. A janela
emoldurava a montanha, por sinal que o seu lado mais fotogénico. A montanha
sentia-se protegida por aquela janela prazenteira, sorridente, aberta de par em
par.
Mas
aconteceu que a estalagem, a que pertencia a janela, fechou. De vez. Falta de
clientes, cansaço do dono ou fosse do que fosse, fechou. Portas e janelas
trancadas.
A
montanha olhava para a janela e sentia saudades. Cá em baixo, no vale,
ouviam-na suspirar e diziam:
— É o
vento da montanha.
Mas
não era. Até a paisagem entristecia.
Da
janela e do seu sentir não podemos saber. Pois se estava fechada. Só aberta,
toda aberta de alegria é que ela era uma verdadeira janela.
A
montanha convocou os ventos para que eles abrissem a sua janela, sem a qual nem
as manhãs de orvalho apeteciam nem as tardes rubras do pôr-do-sol nem as noites
alucinadas pela Lua Cheia.
—
Para quê, para quê, se não tenho a minha janela a ver-me? — murmurava a
montanha, inconsolável.
Mas
os vendavais da montanha por mais esforços que fizessem, por mais empurrões que
dessem não conseguiam abrir a janela. Impossível. Ela só abria para fora.
Desistiram.
Não desistiu a montanha, que chorou, noites e noites a fio, a perda da sua
janela.
Depois
da época das chuvas, voltou o bom tempo. Romperam os malmequeres, no jardim
abandonado da estalagem. A montanha cobriu-se de veludo roxo, que era uma
maciça penugem de pétalas sobre o chão de urze. Começou a cheirar a rosmaninho.
—
Parece que vão reabrir a estalagem, com nova gerência — contava-se, no vale.
E
assim aconteceu. Quando a janela abriu as suas duas portadas, a abarcar a
montanha, fez-se um grande silêncio.
—
Olá, montanha — disse a janela.
—
Olá, janela — disse a montanha.
Como
se ainda ontem se tivessem visto… Mas ficaram que tempos, que tempos, a olhar
uma para a outra.
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