O BOI
VELHO
"Contos
gauchescos", de José Simões Lopes Neto, Editora Martins Livreiro.
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Cuê-pucha!... é bicho mau, o homem!
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Conte vancê as maldades que nós fazemos e diga se não é mesmo! Olhe,
nunca me esqueço dum caso que vi e que me ficou cá na lembrança, e ficará té eu
morrer... como unheiro em lombo de matungo de mulher.
Foi
na estância dos Lagoões, duma gente Silva, uns Silvas mui políticos, sempre
metidos em eleições e enredos de qualificações de votantes.
A
estância era como aqui e o arroio como a umas dez quadras; lá era o banho da
família. Fazia uma ponta, tinha um sarandizal e logo era uma volta forte, como
uma meia-lua, onde as areias se amontoavam formando um baixo: o perau era do
lado de lá. O mato aí parecia plantado de propósito: era quase que pura
guabiroba e pitanga, araçá e guabiju; no tempo, o chão coalhava-se de fruta:
era um regalo!
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Já vê ... o banheiro não era longe, podia-se bem ir lá de a pé, mas a família
ia sempre de carretão, puxado a bois, uma junta, mui mansos, governados de
regeira por uma das senhoras-donas e tocados com uma rama por qualquer das
crianças.
Eram
dois pais da paciência, os dois bois. Um se chamava Dourado, era baio; o outro,
Cabiúna, era preto, com a orelha do lado de laçar, branca, e uma risca na
papada. Estavam
tão mestres naquele piquete, que, quando a família, de manhãzita, depois da jacuba
de leite, pegava a aprontar-se, que a criançada pulava para o terreiro ainda
mastigando um naco de pão e as crioulas apareciam com as toalhas e por fim as
senhoras-donas, quando se gritava pelo carretão, já os bois, havia muito tempo
que estavam encostados no cabeçalho, remoendo muito sossegados, esperando que
qualquer peão os ajoujasse. Assim correram os anos, sempre nesse mesmo serviço.
Quando
entrava o inverno eles eram soltos para o campo, e ganhavam num rincão mui
abrigado, que havia por detrás das casas. Às vezes, um que outro dia de sol
mais quente, eles apareciam ali por perto, como indagando se havia calor
bastante para a gente banhar-se. E mal que os miúdos davam com eles, saíam a
correr e a gritar, numa algazarra de festa para os bichos.
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Olha o Douradol Olha o Cabiúnal Oôch! ... ôch! ...
E
algum daqueles traquinas sempre desencovava uma espiga de milho, um pedaço de
abóbora, que os bois tomavam, arreganhando a beiçola lustrosa de baba, e
punham-se a mascar, mui pachorrentos, ali à vista da gurizada risonha.
Pois
veja vancê ... Com o andar do tempo aquelas crianças se tornaram moças e
homens feitos, foram-se casando e tendo família, e como quera, pode-se
dizer que houve sempre senhoras-donas e gente miúda para os bois velhos levarem
ao banho do arroio, no carretão.
Um
dia, no fim do verão, o Dourado amanheceu morto, mui inchado e duro: tinha sido
picado de cobra.
Ficou
pois solito, o Cabiúna; como era mui companheiro do outro, ali por perto dele
andou uns dias pastando, deitando-se, remoendo. Às vezes esticava a cabeça rara
o morto e soltava um mugido... Cá pra mim o boi velho - uê! tinha caraca grossa
nas aspas! - o boi velho berrava de saudades do companheiro e chamava-o, como
no outro tempo, para pastarem juntos, para beberem juntos, para juntos puxarem
o carretão, ...
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Que vancê pensa! ... os animais se entendem... eles trocam língua! ...
Quando
o Cabíúna se chegava mui perto do outro e farejava o cheiro ruim, os urubus
abriam-se, num trotão, lambuzados de sangue podre, às vezes meio engasgados,
vomitando pedaços de carniça...
-
Bichos malditos, estes encarvoados! ...
Pois,
como ficou solito o Cabiúna, tiveram que ver outra junta para o carretão e o
boi velho por ali foi ficando.
Porém
começou a emagrecer... e tal e qual como uma pessoa penarosa, que gosta
de estar sozinha, assim o carreteiro ganhou o mato, quem sabe, de penaroso.
também...
Um
dia de sol quente ele apareceu no terreiro.
Foi
um alvoroto da miuçalha.
-
Olha o Cabiúna! O Cabiúna! Oôch! Cabiúnal oôch! ...
E
vieram à porta as senhoras-donas, já casadas e mães de filhos, e que quando
eram crianças tantas vezes foram levadas pelo Cabiúna; vieram os moços, já
homens, e todos disseram:
-
Olha o Cabiúna! Oôch! Oôch! ...
Então,
um notou a magreza do boi; outro achou que sim; outro disse que ele não aguentava
o primeiro minuano de maio; e conversa vai, conversa vem, o primeiro, que era
mui golpeado, achou que era melhor matar-se aquele boi, que tinha caraca grossa
nas aspas, que não engordava mais e que iria morrer atolado no fundo dalguma
sanga e... lá se ia então um prejuízo certo, no couro perdido...
E
já gritaram a um peão, que trouxesse o laço; e veio. À mão no mais o sujeito passou
uma volta de meia-cara; o boi cabresteou, como um cachorro ...
Pertinho
estava o carretão, antigão, já meio desconjuntado, com o cabeçalho no ar,
descansando sobre o muchacho.
O
peão puxou da faca e dum golpe enterrou-a até o cabo, no sangradouro do boi
manso; quando retirou a mão, já veio nela a golfada espumenta do sangue do
coração...
Houve
um silenciozito em toda aquela gente.
O
boi velho sentindo-se ferido, doendo o talho, quem sabe se entendeu que aquilo
seria um castigo, algum pregaço de picana, mal dado, por não estar ainda
arrumado. . . - pois vancê creia!-: soprando o sangue em borbotões, já
meio roncando na respiração, meio cambaleando, o boi velho deu uns passos mais,
encostou o corpo ao comprido no cabeçalho do carretão, e meteu a cabeça, certinho,
no lugar da canga, entre os dois canzis ... e ficou arrumado, esperando que o
peão fechasse a brocha e lhe passasse a regeira na orelha branca...
E
ajoelhou ... e caiu ... e morreu...
Os
cuscos pegaram a lamber o sangue, por cima dos capins ... um alçou a
perna e verteu em cima ... e enquanto o peão chairava a faca para
carnear, um gurizinho, gordote, claro, de cabelos cacheados, que estava comendo
uma munhata, chegou-se para o boi morto e meteu-lhe a fatia na boca, batia-lhe
na aspa e dizia-lhe lia sua língua de trapos:
-
Tome, tabiúna! Nó té... Nó fá bila, tabiúna!...
E
ria-se o inocente, para os grandes, que estavam por ali, calados, os diabos, cá
pra mim, com remorsos por aquela judiaria com o boi velho, que os havia
carregado a todos, tantas vezes, para a alegria do banho e das guabirobas, dos
araçás, das pitangas, dos guabijus! ...
-
Veja vancê, que desgraçados; tão ricos e por um mixe couro do boi velho! ...
-
Cuê-pucha! ... é mesmo bicho mau, o homem!
FIM