domingo, 16 de maio de 2021

JOSÉ SARAMAGO - SORRISO

 SORRISO

JOSÉ SARAMAGO
          Sorriso, diz-me aqui o dicionário, é o acto de sorrir. E sorrir é rir sem fazer ruído e executando contracção muscular da boca e dos olhos.
        O sorriso, meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e eu pasmo ao imaginar o autor do dicionário no acto de escrever o seu verbete, assim a frio, como se nunca tivesse sorrido na vida. Por aqui se vê até que ponto o que as pessoas fazem pode diferir do que dizem. Caio em completo devaneio e ponho-me a sonhar um dicionário que desse precisamente, exatamente, o sentido das palavras e transformasse em fio-de-prumo a rede em que, na prática de todos os dias, elas nos envolvem.
          Não há dois sorrisos iguais. Temos o sorriso de troça, o sorriso superior e o seu contrário humilde, o de ternura, o de cepticismo, o amargo e o irónico, o sorriso de esperança, o de condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e (por que não?) o de quem morre. E há muitos mais. Mas nenhum deles é o Sorriso.
        O Sorriso (este, com maiúsculas) vem sempre de longe. É a manifestação de uma sabedoria profunda, não tem nada que ver com as contracções musculares e não cabe numa definição de dicionário. Principia por um leve mover de rosto, às vezes hesitante, por um frémito interior que nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque não tem outra maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós sorrisos que são rápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável que soltam os peixes nas águas fundas? Quando a luz do sol passa sobre os campos ao sabor do vento e da nuvem, que foi que na terra se moveu? E contudo era um sorriso.

FIM

sábado, 10 de abril de 2021

EVALDO MUÑOZ BRAZ - AVIÃO LAÇADO

AVIÃO LAÇADO

EVALDO MUNOZ BRAZ
Caro Cohen
 
        Pois vocês sabiam? Tinha que que ser! O único avião laçado no mundo foi feito por um gaúcho de Santa Maria? Por acaso da minha cidade natal!
      O fato aconteceu em 1952. O nome do gaúcho era Euclides Guterres, com 24 anos na época.
        O piloto, Irineu Noal. O prefixo do avião: PP-HFP, era, um paulistinha, o avião.
         O piloto tava fazendo frescura sobrevoando baixo uma fazenda da região.
        O Euclides não gostou e pra defender as moçoiras da terra atirou o laço de 13 braças e laçou o avião no nariz. Quase, o paulistinha, vem abaixo. Felizmente pra os dois viventes, a hélice cortou o laço.
         O piloto desceu na base aérea de Santa Maria com o laço no nariz do avião. Caçaram a carteira dele na hora.
       Conheci o piloto 30 anos depois do acontecido. Mostrou-me a revista Time com reportagem sobre o fato com o título:"The cowboy and the airplane", e na Life e na O Cruzeiro e em outras publicações. Teria sido a notícia de mais rápida divulgação na época. Em menos de uma hora estava dando na BBC.
         E o guasca era de Santa Maria! Barbaridade!

quarta-feira, 7 de abril de 2021

LUIZ CORONEL - O VASO DE OURO

 O VASO DE OURO
LUIZ CORONEL.
"O cavalo verde"
EDITORA MECENAS, 2002.

         - Mas que tal, tchê? E as Exposições, muita festa e coisa e tal?
         - Bicho velho, nem te conto. Numa noite me enfezei com umas muchachas e saí a la gandaia. Terminei numa casa de tais requintes, que quando fui soltar as virilhas o vaso era de ouro. Ouro maciço, Elpídio. Até me deu um constrangimento.
           - Manoelito, menos, por favor. Não te retruco, nem te contradigo, mas vamos botar esse vaso de ouro por conta dos tragos, mano velho.
           - Tchê, tu sabes, se há uma coisa que me embrulha a alma e arrepia os pêlos é duvidarem de mim. Vamos apostar? A gente vai junto à capital. Mijamos no vaso de ouro, escolho um cavalo crioulo dos teus e, afora isso, uma garrafa de Ballantines. Não mijamos, babaus, o ganho é teu.
       E o rebanho dos dias entrando no corredor das semanas. Um dia, desses que aparecem pendurados nas folhinhas, lá estavam o Elpídio e o Manoelito no Hotel Umbu. O nome já era uma garantia contra os raios. E saíram pela noite, os alarifes.
        Um uísque, aqui não é. Um acepipe e dois uísques, também não. E vamos em frente, que casa noturna é o que não falta. E, afinal de contas, a noite é uma criança.
Lá pelas três da madruga, entraram numa espelunca onde a música deflorava os tímpanos e refestelava as pinguanchas.
Mas foi o Manoelito botar o pé no salão, que veio o grito desaforado de um tal de Manchinha, cantor da banda fuzarqueira:
       - Mutuca, Mutuca, olha o cuera que mijou no teu trambone.
         E foi aquele pega pra capar. Voltaram contritos para Dom Pedrito. Até hoje ninguém sabe quem pagou quem. Agora, é frequente ver os dois comparsas, sentados, numa cadeira de rua, tomando umas que outras de Ballantines.


domingo, 4 de abril de 2021

JOSÉ SIMÕES LOPES - O BOI VELHO

 O BOI VELHO

"Contos gauchescos", de José Simões Lopes Neto, Editora Martins Livreiro.
          - Cuê-pucha!... é bicho mau, o homem!
         - Conte vancê as maldades que nós fazemos e diga se não é mesmo! Olhe, nunca me esqueço dum caso que vi e que me ficou cá na lembrança, e ficará té eu morrer... como unheiro em lombo de matungo de mulher.
Foi na estância dos Lagoões, duma gente Silva, uns Silvas mui políticos, sempre metidos em eleições e enredos de qualificações de votantes.
        A estância era como aqui e o arroio como a umas dez quadras; lá era o banho da família. Fazia uma ponta, tinha um sarandizal e logo era uma volta forte, como uma meia-lua, onde as areias se amontoavam formando um baixo: o perau era do lado de lá. O mato aí parecia plantado de propósito: era quase que pura guabiroba e pitanga, araçá e guabiju; no tempo, o chão coalhava-se de fruta: era um regalo!
         - Já vê ... o banheiro não era longe, podia-se bem ir lá de a pé, mas a família ia sempre de carretão, puxado a bois, uma junta, mui mansos, governados de regeira por uma das senhoras-donas e tocados com uma rama por qualquer das crianças.
      Eram dois pais da paciência, os dois bois. Um se chamava Dourado, era baio; o outro, Cabiúna, era preto, com a orelha do lado de laçar, branca, e uma risca na papada.                     
        Estavam tão mestres naquele piquete, que, quando a família, de manhãzita, depois da jacuba de leite, pegava a aprontar-se, que a criançada pulava para o terreiro ainda mastigando um naco de pão e as crioulas apareciam com as toalhas e por fim as senhoras-donas, quando se gritava pelo carretão, já os bois, havia muito tempo que estavam encostados no cabeçalho, remoendo muito sossegados, esperando que qualquer peão os ajoujasse. Assim correram os anos, sempre nesse mesmo serviço.
      Quando entrava o inverno eles eram soltos para o campo, e ganhavam num rincão mui abrigado, que havia por detrás das casas. Às vezes, um que outro dia de sol mais quente, eles apareciam ali por perto, como indagando se havia calor bastante para a gente banhar-se. E mal que os miúdos davam com eles, saíam a correr e a gritar, numa algazarra de festa para os bichos.
        - Olha o Douradol Olha o Cabiúnal Oôch! ... ôch! ...
     E algum daqueles traquinas sempre desencovava uma espiga de milho, um pedaço de abóbora, que os bois tomavam, arreganhando a beiçola lustrosa de baba, e punham-se a mascar, mui pachorrentos, ali à vista da gurizada risonha.
       Pois veja vancê ... Com o andar do tempo aquelas crianças se tornaram moças e homens feitos, foram-se casando e tendo família, e como quera, pode-se dizer que houve sempre senhoras-donas e gente miúda para os bois velhos levarem ao banho do arroio, no carretão.
        Um dia, no fim do verão, o Dourado amanheceu morto, mui inchado e duro: tinha sido picado de cobra.
        Ficou pois solito, o Cabiúna; como era mui companheiro do outro, ali por perto dele andou uns dias pastando, deitando-se, remoendo. Às vezes esticava a cabeça rara o morto e soltava um mugido... Cá pra mim o boi velho - uê! tinha caraca grossa nas aspas! - o boi velho berrava de saudades do companheiro e chamava-o, como no outro tempo, para pastarem juntos, para beberem juntos, para juntos puxarem o carretão, ...
       - Que vancê pensa! ... os animais se entendem... eles trocam língua! ...
     Quando o Cabíúna se chegava mui perto do outro e farejava o cheiro ruim, os urubus abriam-se, num trotão, lambuzados de sangue podre, às vezes meio engasgados, vomitando pedaços de carniça...
          - Bichos malditos, estes encarvoados! ...
        Pois, como ficou solito o Cabiúna, tiveram que ver outra junta para o carretão e o boi velho por ali foi ficando.
      Porém começou a emagrecer... e tal e qual como uma pessoa penarosa, que gosta de estar sozinha, assim o carreteiro ganhou o mato, quem sabe, de penaroso. também...
        Um dia de sol quente ele apareceu no terreiro.
        Foi um alvoroto da miuçalha.
       - Olha o Cabiúna! O Cabiúna! Oôch! Cabiúnal oôch! ...
      E vieram à porta as senhoras-donas, já casadas e mães de filhos, e que quando eram crianças tantas vezes foram levadas pelo Cabiúna; vieram os moços, já homens, e todos disseram:
        - Olha o Cabiúna! Oôch! Oôch! ...
      Então, um notou a magreza do boi; outro achou que sim; outro disse que ele não aguentava o primeiro minuano de maio; e conversa vai, conversa vem, o primeiro, que era mui golpeado, achou que era melhor matar-se aquele boi, que tinha caraca grossa nas aspas, que não engordava mais e que iria morrer atolado no fundo dalguma sanga e... lá se ia então um prejuízo certo, no couro perdido...
      E já gritaram a um peão, que trouxesse o laço; e veio. À mão no mais o sujeito passou uma volta de meia-cara; o boi cabresteou, como um cachorro ...
    Pertinho estava o carretão, antigão, já meio desconjuntado, com o cabeçalho no ar, descansando sobre o muchacho.
        O peão puxou da faca e dum golpe enterrou-a até o cabo, no sangradouro do boi manso; quando retirou a mão, já veio nela a golfada espumenta do sangue do coração...
Houve um silenciozito em toda aquela gente.
       O boi velho sentindo-se ferido, doendo o talho, quem sabe se entendeu que aquilo seria um castigo, algum pregaço de picana, mal dado, por não estar ainda arrumado. . . - pois vancê creia!-: soprando o sangue em borbotões, já meio roncando na respiração, meio cambaleando, o boi velho deu uns passos mais, encostou o corpo ao comprido no cabeçalho do carretão, e meteu a cabeça, certinho, no lugar da canga, entre os dois canzis ... e ficou arrumado, esperando que o peão fechasse a brocha e lhe passasse a regeira na orelha branca...
           E ajoelhou ... e caiu ... e morreu...
        Os cuscos pegaram a lamber o sangue, por cima dos capins ... um alçou a perna e verteu em cima ... e enquanto o peão chairava a faca para carnear, um gurizinho, gordote, claro, de cabelos cacheados, que estava comendo uma munhata, chegou-se para o boi morto e meteu-lhe a fatia na boca, batia-lhe na aspa e dizia-lhe lia sua língua de trapos:
- Tome, tabiúna! Nó té... Nó fá bila, tabiúna!...
          E ria-se o inocente, para os grandes, que estavam por ali, calados, os diabos, cá pra mim, com remorsos por aquela judiaria com o boi velho, que os havia carregado a todos, tantas vezes, para a alegria do banho e das guabirobas, dos araçás, das pitangas, dos guabijus! ...
        - Veja vancê, que desgraçados; tão ricos  e por um mixe couro do boi velho! ...
           - Cuê-pucha! ... é mesmo bicho mau, o homem!
FIM

segunda-feira, 1 de março de 2021

J. J. LETRIA - A LIÇÃO DA PACIÊNCIA

A LIÇÃO DA PACIÊNCIA

J. J. LETRIA
CONTOS DA CHINA ANTIGA
PORTO, AMBAR, 2002

        Um mandarim que se preparava para desempenhar um importante cargo oficial recebeu a visita de um amigo que lhe foi apresentar as despedidas.
         Abraçaram-se e o amigo recomendou-lhe:
        — Acima de tudo, no desempenho das tuas importantes funções, nunca percas a paciência.
Prometeu o mandarim que nunca esqueceria este precioso conselho.
     Três vezes repetiu o amigo a mesma recomendação, provocando o enfado do mandarim. Quando se preparava para o fazer pela quarta vez, o mandarim exaltou-se e gritou:
     — Basta, eu não sou surdo e muito menos sou um imbecil!
       Então o amigo, acalmando-o com a mão posta sobre o seu ombro, fez este comentário:
       — Podes assim ver como é importante ser paciente. Três vezes ouviste o meu conselho, já não conseguindo dissimular o enfado. À quarta vez não conseguiste controlar a fúria. O que acontecerá quando, no desempenho do teu cargo, tiveres de ser verdadeiramente paciente?
     O amigo baixou os olhos para o chão e limitou-se a suspirar.