SOZINHOS
LUÍS
FERNANDO VERÍSSIMO
Publicado 31 de março de
2017 | Por Célia
Iarosz Frez
Esta
ideia para um conto de terror é tão terrível que, logo depois de tê-la, me
arrependi. Mas já estava tida, não adiantava mais. Você, leitor, no entanto,
tem uma escolha. Pode parar aqui, e se poupar, ou ler até o fim e provavelmente
nunca mais dormir. Vejo que decidiu continuar. Muito bem, vamos em frente.
Talvez, posta no papel, a ideia perca um pouco do seu poder de susto. Mas não
posso garantir nada. É assim:
Um
casal de velhos mora sozinho numa casa. Já criaram os filhos, os netos já estão
grandes, só lhes resta implicar um com o outro. Retomam com novo fervor uma
discussão antiga. Ela diz que ele ronca quando dorme, ele diz que é mentira.
–
Ronca.
–
Não ronco.
–
Ele diz que não ronca – comenta ela, impaciente, como se falasse com uma
terceira pessoa.
Mas
não existe outra pessoa na casa. Os filhos raramente visitam. Os netos, nunca.
A empregada vem de manhã, faz o almoço, deixa o jantar e sai cedo.
Ficam
os dois sozinhos.
–
Eu devia gravar os seus roncos, pra você se convencer – diz ela. E em seguida tem
a ideia infeliz. – É o que eu vou fazer! Esta noite, quando você dormir, vou
ligar o gravador e gravar os seus roncos.
–
Humrfm – diz o velho.
Você,
leitor, já deve estar sentindo o que vai acontecer. Pare de ler, leitor. Eu não
posso parar de escrever. Às ideias não podem ser desperdiçadas, mesmo que nos
custem amigos, a vida ou o sono. Imagine se Shakespeare tivesse se horrorizado
com suas próprias ideias e deixado de escrevê-las, por puro comedimento. Não
que eu queira me comparar a Shakespeare. Shakespeare era bem mais magro. Tenho
que exercer este ofício, esta danação. Você, no entanto, não é obrigado a me
acompanhar, leitor. Vá passear, vá tomar um sol. Uma das maneiras de controlar
a demência solta no mundo e deixar os escritores falando sozinhos, exercendo
sozinhos a sua profissão malsã, o seu vício solitário. Você ainda está lendo.
Você é pior do que eu, leitor. Você tinha escolha.
Sozinhos.
Os velhos sozinhos na casa. Os dois vão para a cama. Quando o velho dorme, a
velha liga o gravador. Mas em poucos minutos a velha também dorme. O gravador
fica ligado, gravando. Pouco depois a fita acaba.
Na
manhã seguinte, certa do seu triunfo, a velha roda a fita. Ouvem-se alguns
minutos de silêncio. Depois, alguém roncando.
–
Rarrá! – diz a velha, feliz.
Pouco
depois ouve-se o ronco de outra pessoa, a velha também ronca!
–
Rarrá! – diz o velho, vingativo.
E
em seguida, por cima do contraponto de roncos, ouve-se um sussurro. Uma voz
sussurrando, leitor. Uma voz indefinida. Pode ser de homem, de mulher ou de
criança. A princípio – por causa dos roncos – não se distingue o que ela diz.
Mas aos poucos as palavras vão ficando claras. São duas vozes.
É
um diálogo sussurrado.
“Estão
prontos?”
“Não,
acho que ainda não…”
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