SOZINHOS
sábado, 14 de novembro de 2020
LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - SOZINHOS
terça-feira, 27 de outubro de 2020
FOLCLORE SUECO - INGEBORG E HIALMAR
Ingeborg e Hialmar)
FOLCLORE SUECO
O velho Rei vacilou. Não podia prescindir de Hialmar, mas também temia a cólera dos filhos de Ansgrim. Não sabendo como resolver a questão, decidiu chamar sua filha, para que fosse ela quem escolhesse entre os dois apaixonados.
Apareceu Ingeborg ante eles, mais bela do que nunca. Ao saber o que .dela se esperava, sorriu, feliz, e, sem temor algum, sem vacilar um único instante, estendeu a mão para Hialmar, declarando que de há muito desejava ser sua esposa.
Quando a estranha visão se desvaneceu, Angandyr despertou e viu a seu lado uma espada. Apanhou-a, surpreendido. Era a Tirfing.
Aproximava-se a data do combate em Samsé. Ingeborg tecia uma forte couraça de seda para Hialmar, mas um terrível pressentimento impedia-a de adiantar o trabalho. As agulhas caíam-lhe das mãos e a jovem chorava amargamente, porque, embora confiando no valor e na audácia de seu amado, tinha a certeza de que ele morreria em combate.
Também Hialmar tinha esse pressentimento. Só a Orrar Oddur, que devia acompanhá-lo ao combate, confiara seus temores.
Chegou o momento da partida, e os dois apaixonados, com o coração cheio de dor, despediram-se à beira do mar. Ingeborg entregou ao seu noivo um anel de ouro, como prenda de seu amor e de sua fé. Hialmar colocou o anel no dedo e ao ver o amor que lhe dedicava a princesa a quem adorava, sentiu renascer a confiança e a coragem para afrontar o perigo da espada envenenada de Angandyr. O pensamento de que era ela o prêmio para a sua façanha dissipou seus lúgubres pressentimentos.
Orrar Oddur e Hialmar chegaram a Samsé e encontraram os doze irmãos. Onze deles precipitaram-se sobre Oddur. Hialmar lançou-se contra Angandyr.
Enquanto Orrar se defendia do violento ataque dos onze irmãos, gritava a Hiovard que aquele não era procedimento digno de nobres. Que cada um deles viesse à luta por sua vez, e ele daria boa conta de todos. Assim o fizeram, e, um por um, caíram os onze aos golpes fortes da espada do Viking.
FIM
sábado, 17 de outubro de 2020
FOLCLORE JAPONÊS - A TECELÃ DE NUVENS
Há muito tempo atrás, em uma terra do sol nascente, morava um jovem agricultor, seu nome era Sei, e ele estava preparando suas terras para o plantio. Sei vivia sozinho e triste, pois a mãe, que era tecelã, havia falecido e ele fazia e não havia ninguém para ajudá-lo a cuidar de suas terras. Naquele dia, Sei estava semeando e, de repente, viu uma cobra rastejando no chão.
Sei percebeu que a cobra deslizava em direção a uma moita de
crisântemos, onde havia uma aranha suspensa em um fio de sua teia. A aranha fez
Sei lembrar de sua mãe - pequena e indefesa - e imediatamente levou a cobra
para longe da aranha com seu ancinho. A aranha ficou surpresa com a bondade de
Sei e olhou para ele, porém ele não percebeu, pois já havia voltado ao seu
trabalho.
Passaram-se alguns dias e uma jovem bateu em sua porta. Ela se curvou e
lhe perguntou se ele estava precisando de uma tecelã. Sei ficou surpreso pois
realmente precisava, mas não havia comentado isso com ninguém e perguntou para
a jovem:
- Como sabe que preciso de uma tecelã?
E a jovem respondeu tímida:
- Apenas sei. Ficarei muito contente se puder ajudá-lo.
Muito feliz e grato, Sei levou a jovem para o quarto de tecelagem de sua
mãe. Enquanto a jovem tecia, Sei continuava seu trabalho no campo.
À noite quando Sei voltou para casa, bateu no quarto de tecelagem e
perguntou:
- Terminou alguma obra?
A jovem abriu a porta revelando uma dúzia de belas peças de tecidos,
suficiente para um kimono.
- Impossível, como pôde fazer tantas em tão pouco tempo? - perguntou
Sei.
- Prometa-me que não vai nunca mais fazer essa pergunta e nunca entrará
no quarto enquanto eu estiver trabalhando - respondeu a jovem.
- Prometo - respondeu Sei.
Dia após dia, Sei descobria que a jovem tecia peças cada vez mais
bonitas e delicadas. Em um dia implorou à jovem:
- Por favor diga-me como consegue fazer essas peças tão belas.
A jovem apenas respondeu:
- Lembre-se de sua promessa.
Semanas depois a curiosidade de Sei venceu. Ao retornar à sua casa viu a
janela do quarto de tecelagem aberta e pensou que não estaria quebrando a
promessa se desse uma espiada. Quando olhou pela janela Sei quase desmaiou.
Diante do tear não havia uma jovem, e sim, uma enorme aranha de oito
pernas. Sei olhou de novo pois era difícil acreditar. Lembrou-se da pequena
aranha que havia ajudado e entendeu que essa era a sua recompensa.
Sei não sabia como expressar o tamanho da sua gratidão, ao mesmo tempo
não queria que soubesse que tinha quebrado a promessa.
No dia seguinte, Sei partiu para uma aldeia distante em busca de
algodão. Comprou e colocou o pacote em suas costas. Cansado do peso, Sei parou
para descansar em uma pedra. Sei cochilou e não viu a mesma cobra que ele havia
expulsado semanas atrás. A cobra o viu e não perdeu a chance, entrou no pacote
de algodão.
Quando chegou em casa Sei entregou o pacote para a jovem. Ela se curvou
agradecendo, sorriu e voltou para o quarto de tecelagem.
No quarto a jovem se transformou na aranha e começou a consumir o algodão,
engolindo-o o mais rápido possível para que pudesse girar em fio de prata.
Quando chegou ao final do pacote, inesperadamente, a cobra apareceu abrindo a
boca.
Aterrorizada, a aranha saltou pela janela. Mas a cobra a alcançou.
Quando estava prestes a engoli-la, um raio de sol que atingia o punhado
de algodão que saía pela boca da aranha, levantou-a e puxou para o céu.
Para mostrar sua gratidão, a aranha usou o algodão que havia engolido,
não para tecer pano mas para tecer flocos de nuvens no céu.
Por isso, no japonês a palavra "kumo" significa nuvem e aranha. Embora os kanji sejam diferentes a pronuncia é a mesma.
terça-feira, 6 de outubro de 2020
IRMÃOS GRIMM - OS DOZE CAÇADORES
Há muito
tempo atrás, aconteceu que um príncipe ficou noivo da filha do rei de um país
vizinho. Eles se amavam muito e, quando festejavam o noivado, veio a notícia de
que o pai dele estava muito mal. Então, despedindo-se apressadamente, o
príncipe colocou um precioso anel no dedo da noiva e lhe disse:
- Este anel
é para você não se esquecer de mim. Tenho que deixá-la agora, mas, assim que me
tornar rei, virei buscá-la.
E,
beijando-a, partiu. Chegando ao castelo do pai, encontrou-o já moribundo e seu pesar
foi tão grande que nem se lembrou de comunicar-lhe o noivado.
Não querendo
contrariar o velho e querido pai em seus últimos instantes de vida, o príncipe
respondeu:
- Sim, meu
pai, Ela será minha esposa.
O velho rei
morreu serenamente e, passado o período de luto, o príncipe tornou-se rei e foi
obrigado a cumprir o prometido. Pediu em casamento a princesa escolhida pelo
pai e foi aceite.
Quando a
primeira noiva soube disso, quase morreu de desgosto. Seu pai, vendo-a tão
abatida, disse:
- Filha, se
o seu noivo não cumpriu a promessa que lhe fez, é porque não a merece.
Não fique triste. Peça o que quiser que lhe
darei.
E ela
respondeu:
- Paizinho,
será que podia me arranjar onze moças iguaizinhas a mim? Com a minha altura, o
meu tipo?
- Nem que
seja para revirar o mundo, você vai ter as suas moças - prometeu-lhe o pai. E,
naquele mesmo dia, mandou procurar por todo o reino as onze moças que a filha
queria.
Passou uma
semana e elas estavam no palácio. Então a princesa mandou fazer doze costumes
de caçador, todos iguaizinhos e, quando ficaram prontos, ela e as moças
vestiram-se com eles. Depois despediu-se do pai, montou seu cavalo e,
acompanhada das moças, dirigiu-se para o reino de seu ex-noiva, a quem
continuava amando. Chegando lá, apresentou-se ao rei e perguntou-lhe se não estava
precisando de caçadores e se não queria tomar a seu serviço todos eles juntos.
O rei não a reconheceu, mas gostou daquela turma de rapazes jovens e bonitos.
E, desde esse dia, eles se tornaram os doze caçadores do rei.
Contudo, o
rei tinha um leão que o acompanhava por toda a parte, um animal maravilhoso que
sabia falar e adivinhava as coisas mais secretas e ocultas. Uma noite, estando
os dois conversando, o leão disse:
- Então você
imagina que tem doze caçadores...
- Imagino
não! Eu tenho - corrigiu o rei. - Seria mais exato dizer "doze
caçadoras" - retrucou o leão.
- Por que
diz isso?
- Por que
são doze moças.
- Não é
possível! - e o rei exigiu que ele provasse o que dizia.
- Isso é
fácil! Mande espalhar ervilhas na sua ante-sala, chame os caçadores e verá.
Homens têm o passo firme. Quando pisam sobre ervilhas, elas não saem do lugar.
Mulheres... Bah! Vai ver só como tropeçam, escorregam e espalham ervilhas para
todos os lados.
O rei gostou
do conselho e assim fez. Aconteceu que o camareiro real ouviu a conversa e,
como simpatizava com os caçadores, assim que pôde, foi procurá-los e
contou-lhes tudo. A princesa agradeceu-lhe e, depois que ele saiu, ordenou às
companheiras:
- Amanhã vocês têm que se controlar e pisar firme sobre as ervilhas. Nem uma só pode rolar.
No outro
dia, quando foram chamados pelo rei, os caçadores entraram na antessala pisando
as ervilhas com tanta firmeza que nem uma só rolou. Depois que se retiraram, o
rei chamou o leão e disse:
- Desta vez
você se enganou. Meus caçadores pisam como homens!
- É porque
elas souberam que iam ser postas à prova e se prepararam - respondeu o leão. -
Mande trazer doze rocas para a sua antessala e vai ver o que acontece. Quando
passarem por elas, mulheres que são, vão se deter e se alegrar. Homens não
fazem isso.
O rei
concordou. Porém, o camareiro real, também desta vez, escutou a conversa e foi prevenir
os caçadores.
Quando
ficaram a sós, a princesa recomendou às companheiras:
- Cuidado! Vocês têm que passar pelas rocas sem olhar para elas!
No dia
seguinte, atendendo ao chamado do rei, elas atravessaram a antessala sem dirigir
sequer um olhar para as rocas. Depois que saíram, o rei disse ao leão:
- Viu? Eles
nem repararam nas rocas!
O leão
retirou-se com um ar ofendido e o assunto foi esquecido. O rei continuou com
suas caçadas, sempre com seu grupo de rapazes, cada vez gostando mais deles e,
entre todos, o seu preferido era a princesa. Um dia, durante uma caçada, vieram
avisar que a noiva oficial estava a caminho. Ao ouvir isso, a princesa ficou
tão magoada que desmaiou. O rei correu em sua ajuda e, querendo reanimá-la,
tirou-lhe a luva. Então viu o anel que lhe havia dado e, observando seu rosto,
reconheceu-a. Quando ela abriu os olhos, beijou-a, dizendo:
E ela
respondeu baixinho, aninhando-se nos braços dele.
- Entre doze
caçadores semelhantes, você me preferiu e agora sabe porquê...
FIM
domingo, 4 de outubro de 2020
LUIGI PIRANDELLO - O CORVO DE MIZZARO
O
CORVO DE MIZZARO
LUIGI PIRANDELLO
Certos
pastores desocupados, galgando um dia as montanhas de Mizzaro, surpreenderam,
no ninho, um enorme corvo que estava chocando os ovos, pacificamente...
—
Ó basbaque, que fazes aí? Vejam só: chocando os ovos! Isso é serviço de tua
mulher, basbaque!
Não
é de crer que o corvo deixasse de dar as suas razões; deu-as, e numa linguagem
de corvo, gritando. Contudo, ninguém o ouviu. Os tais pastores levaram o dia
inteiro torturando-o com as suas pilhérias, até que um deles resolveu levá-lo
consigo para a aldeia. Mas no dia seguinte, não sabendo o que fazer deste corvo
enorme, dependurou-lhe, como lembrança, um guizo de bronze ao colo e o libertou
de novo:
—
Goza!
Só
mesmo o corvo é que poderá saber a impressão que lhe causou aquele guizo
sonoro, porque o arrastou consigo para o céu. Vendo-o voar, voar amplamente,
cada vez mais alto, dir-se-ia que ele estivesse satisfeito, já agora esquecido
do ninho e da mulher.
—
Dim dimdim, dim dimdim...
Os
camponeses que trabalhavam debruçados sobre a terra, ouviam aqueles guizos e
erguiam o pescoço; olhavam aqui, ali, pela planície imensa que se estendia sob
o incêndio do sol:
—
Que é que está tocando? De onde vem esse som?
Mas
se não havia vento, de que igreja distante podia chegar até eles esse bimbalhar
festivo?
Supunham
tudo menos que fosse um corvo no azul do céu.
—
Espíritos! — pensou Ciché, que trabalhava sozinho numa herdade, atento a
desencavar conchas em torno de alguns frutos de amendoeira, a fim de enchê-las
de estrume. E fez-se o sinal da cruz. Porque ele acreditava piamente na
existência de espíritos. Fizera experiências em outras ocasiões. E até ao
voltar, certa noite, do campo, pela estrada que margeia as Fornaci extintas,
que era onde eles moravam, no dizer de todos, ouviu que o chamavam. — Ciché!
Ciché! E sentiu que os cabelos se eriçavam sob o boné.
Aquele
bimbalhar ele o ouvira a princípio, à distância, depois mais perto, e depois
novamente à distância. Em redor não havia viva alma: campo, árvores e plantas,
que não falavam, sentiam, que com a sua impassibilidade tinham aumentado o seu
espanto. À hora da merenda, que consistia num pedaço de pão e numa cebola, que
trouxera de casa e que deixara dependurada numa sacola, perto dele, junto com o
paletó, a uma árvore de oliveira, não encontrou a cebola; encontrou apenas o
pedaço de pão. E foi assim durante três dias em seguida.
Não
disse nada a ninguém, porque sabia que quando os Espíritos começam a atormentar
uma pessoa, ai de quem se lamente! Fazem pior.
—
Não me sinto bem — respondia Ciché, ao voltar de tarde para casa, à mulher que
lhe perguntava a razão daquele seu aspecto transtornado.
—
Mas, ao menos, coma! — observava-lhe a companheira, vendo que ele engolia duas
ou três colheradas de sopa, uma após outra.
—
Sim, como! — Mastigava Ciché, em jejum desde a manhã e com ódio por não poder
abrir-se com a esposa.
Até
que por todo o campo se espalhou a notícia daquele corvo ladrão que andava
tocando o guizo pelo céu.
Ciché
teve a desdita de não rir do caso como os demais camponeses, que também andavam
com apreensões.
—
Prometo e juro — disse ele — que me pagará caro a brincadeira!
E
que fez? Trouxe na sacola, junto com o pedaço de pão e a cebola, quatro favas
secas e quatro costuradas a barbante. Assim que chegou à herdade, tirou selim
ao asno e o soltou pelo campo, livremente. Ciché falava com o asno como se fala
com um cristão; e o asno, ora erguendo esta, ora erguendo aquela outra orelha,
de quando em quando rugia, como se lhe respondesse a seu modo.
—
Vá, Chico, vá — disse-lhe nesse dia Ciché. — E esteja atento, porque nos
divertiremos!
Furou
as favas; amarrou as quatro costuradas a barbante no selim, e as colocou em
terra sobre a sacola. Depois afastou-se para começar a trabalhar.
Chegou a hora da ceia. Perplexo, sem saber se havia de ir logo ao pão ou esperar ainda um pouco, Ciché por fim se decidiu; vendo, porém, tão bem preparada a cilada, resolveu não mexer nela. Nisto, ouviu claramente um tinido distante. Ergueu a cabeça:
— Ei-lo!
E quieto e inclinado, com o coração que lhe pulsava violentamente, deixou o lugar e se escondeu ao longe.
Mas o corvo, como se se estivesse deliciando com o som da campainha, voava, voava, revoava, sempre no alto, cada vez mais alto e não tratava de descer.
— Desconfio que me está vendo — pensou Ciché; e ergueu-se para ir esconder-se mais longe.
O corvo continuou voando sem dar demonstrações de que pretendia descer. Ciché estava com fome, mas mesmo assim não queria dar-se por vencido. Pôs-se de novo a carpir. Espera, espera, e o corvo sempre no alto, como se estivesse fazendo de propósito. Esfomeado, com o pão a dois passos dali, meus senhores, e sem poder pegá-lo! Ciché remoia-se todo por dentro, mas resistia, indignado, obstinado.
— Hás de descer! hás de descer! Também tu hás de ter fome!
O
corvo, entretanto, do alto do céu, com o som da campainha, parecia que lhe
respondia irônico:
—
Nem tu nem eu! Nem tu nem eu!
Passou-se
assim o dia. Ciché, exasperado, desafogou--se com o asno, tornando a meter-lhe o
selim, de que pendiam, como um adorno de novo gênero, as quatro favas. E
enquanto caminhava, mordeu indignado aquele pão, que fora o seu suplício o dia
inteiro. A cada mordida, soltava um palavrão para o corvo: — carrasco, ladrão,
traidor... — porque não se deixara prender na cilada.
Mas
no dia seguinte tudo correu bem.
Armada
a cilada das favas com o mesmo cuidado, pusera-se a trabalhar quando ouviu um
bimbalhar convulso ali perto e um grasnar desesperado, entre um furioso sacudir
de asas. Foi ver o que era. O corvo estava ali, preso pelo barbante que lhe
saía do bico e o estrangulara.
—
Ah, caíste? — gritou-lhe ele, aferrando-o pelas asas enormes. — É boa a fava?
Agora é a minha vez, besta feroz! Vais ver.
Cortou
o barbante e, para começar, aplicou dois piparotes na cabeça do corvo.
—
Este pelo medo e este pelo jejum!
O
asno que não estava muito disposto a arrancar as ervas do caminho, ouvindo
grasnar o corvo saiu correndo, em disparada, assustado. Ciché fê-lo parar com
um grito e de longe lhe mostrou a besta negra:
—
Ei-lo aqui, Chico! Prendemo-lo! Amarrou-o pelos pés, dependurou-o na árvore e
voltou ao trabalho. Enquanto carpia, pôs-se a pensar na desforra. Ter-lhe-ia
cortado as asas, para que não pudesse nunca mais voar; depois o entregaria aos
filhos e as crianças da vizinhança para que se divertissem à custa dele. E ria,
ria, entre dentes.
Ao
anoitecer, colocou o selim no asno, desamarrou o corvo e prendeu-o pelos pés ao
rabicho do asno; cavalgou e se pôs a caminho de casa. A campainha amarrada ao
pescoço do corvo, começou a tilintar. O asno eriçou as orelhas e se pôs em pé.
—
Vamos! — gritou-lhe Ciché, dando um soco na cabeça do animal.
E
o asno se pôs de novo a caminho, não muito conformado com aquele som insólito
que acompanhara o seu lento trotear sobre a poeira da estrada.
Ciché
começou a pensar que desse dia em diante ninguém mais havia de ouvir bimbalhar
no céu o corvo de Mizzaro. Tinha-o ali e não dava mais sinal de vida.
—
Que fazes? — lhe perguntou, virando-se e dando-lhe uma chicotada. — Estás
dormindo?
O
corvo, em resposta ao látego:
—
Cráh!
Diante
dessa voz inesperada, o asno estacou de golpe, com as orelhas estendidas. Ciché
explodiu numa risada.
—
Vamos, Chico! De que te assustas?
E
com a corda bateu na orelha do asno. Pouco depois, de novo, repetiu a pergunta
ao corvo:
—
Adormeceste?
E
uma chicotada mais forte. E o corvo, por sua vez, mais forte ainda:
—
Cráh!
Mas
desta vez o asno deu um salto e saiu em disparada. Em vão Ciché, com toda a
força dos braços e das pernas, procurou detê-lo. O corvo, sacudido naquela
corrida desenfreada, começou a grasnar como um desesperado: e quanto mais
grasnava tanto mais o asno corria, espantado.
—
Cráh! Cráh! Cráh!
Ciché
gritava, por sua vez, puxava a rédea, puxava, mas já agora as duas bestas
pareciam enfurecidas pelo espanto que se incutiam mutuamente, uma grasnando e a
outra fugindo. Ecoou, durante certo tempo, dentro da noite, a fúria daquela
corrida desenfreada; ouviu-se depois um formidável tombo, e mais nada.
No
dia seguinte. Ciché foi encontrado, no fundo de um barranco, esfacelado, sob o
asno também esfacelado: uma carniça que fumegava sob o sol, entre nuvens de
moscas.
O
corvo de Mizzaro, negro no azul da formosa manhã, soava de novo pelos céus a
sua campainha, livre e feliz.
NOTA: Publicado originalmente no suplemento literário de "A Noite", edição de 1930. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016).