terça-feira, 27 de outubro de 2020

FOLCLORE SUECO - INGEBORG E HIALMAR

Ingeborg e Hialmar)

FOLCLORE SUECO

              HIALMAR, o herói descendente dos Vetars, tinha feito um pacto de fraternidade com Orrar Oddur, o Viking.
           Juntos se haviam apresentado ao rei de Sigtune, Ané, prometendo-lhe fidelidade absoluta.
        O rei Ané tinha uma filha chamada Ingeborg, que amava secretamente Hialmar, e sentia-se desgraçada porque acreditava que o herói não reparara em sua beleza. Estava, porém, enganada, pois que também Hialmar a queria, embora jamais tivesse confessado seu amor.
         Em Bolmsé, país próximo de Sigtune, remava Ansgrim, o gigante, pai de doze filhos, todos audazes guerreiros. O mais velho, Hiovard, tinha contemplado uma única vez a formosura de Ingeborg e por ela se apaixonara de tal maneira que, quando chegou a festa de Yul — a festa do verão — e Ansgrim e seus filhos brindaram com a taça de hidromel para que cada um deles propusesse uma nova gesta com que se expandisse sua fama de heróis, Hiovard declarou que aquele ano conseguiria a mão da princesa de Sigtune, mesmo que a isso se opusessem o Rei e todo o país.


           Ansgrim, prudente, lembrou ao filho a presença em Sigtune de dois irmãos de armas: Orrar Oddur, o Viking, e Hialmar, o herói. Hiovard assegurou que estava disposto a bater-se fosse com quem fosse, e dez de seus doze irmãos beberam a taça de hidromel, declarando que se colocariam ao lado de seu irmão em qualquer circunstância, e que lutariam em defesa dele contra todos os guerreiros de Sigtune reunidos.
            Angandyr, o mais moço, tinha ainda intacta sua taça de hidromel. O pai, surpreendido, perguntou-lhe se êle seria suficientemente covarde para não se unir à luta de seus irmãos pela conquista de Ingeborg. Levantou-se, então, o mais moço dos irmãos e declarou que acompanhar os demais na luta contra Sigtune parecia-lhe pouca coisa. Queria encontrar, e apoderar-se da espada Tirfing, cujo fio era envenenado e saía vitoriosa de todas as lutas. Os anões, inimigos dos deuses do Valhala, tinham forjado aquela espada, havia muito tempo. Vários heróis tinham-na possuído, e com ela conquistado memoráveis vitórias. Agora estava escondida nas profundezas da terra, e ninguém sabia de seu paradeiro.


         Tanto o pai como os onze irmãos do jovem admiraram-lhe a coragem de formular tal promessa, que consideravam impossível de realizar.
        Pouco tempo depois, os doze irmãos dirigiram-se para Sigtune, onde foram recebidos em audiência pelo rei, rodeado de todos os seus guerreiros. Angandyr olhou atentamente para a espada de todos os presentes, sem poder descobrir a Tirfing entre elas.
       Ao oferecer-lhe Ané a taça de hidromel, Hiovard recusou-a, dizendo que não tinha vindo em ânimo pacífico nem para beber com ele. Vinha buscar a princesa Ingeborg, que solicitava como esposa.
          Antes que o Rei tivesse tempo de responder, levantou-se Hialmar com tal violência que sua armadura ressoou estrepitosamente. Colocou-se na frente do Rei e disse-lhe que ele havia defendido todo o tempo as costas de seu Estado, que as rochas do mar podiam dar testemunho dos numerosos combates que às suas margens tinha ganho. Nunca pedira uma recompensa, porque sentia satisfação em cumprir a promessa, que fizera quando ainda era quase uma criança, de dedicar sua vida à salvaguarda de seu país. Agora se tornara um homem e não se sentia disposto a esperar, só e sem lar, a chegada da morte. Também ele amava a princesa Ingeborg, e solicitava-lhe a mão dela.
        O velho Rei vacilou. Não podia prescindir de Hialmar, mas também temia a cólera dos filhos de Ansgrim. Não sabendo como resolver a questão, decidiu chamar sua filha, para que fosse ela quem escolhesse entre os dois apaixonados.
          Apareceu Ingeborg ante eles, mais bela do que nunca. Ao saber o que .dela se esperava, sorriu, feliz, e, sem temor algum, sem vacilar um único instante, estendeu a mão para Hialmar, declarando que de há muito desejava ser sua esposa.

          Hiovard e seus onze irmãos, indignados pela afronta que, segundo eles, lhes infligia Hialmar, desafiaram-no a que fosse a Samsé, combater com eles. Hialmar aceitou o repto.
Os doze gigantes saíram do palácio de Ané com o coração repleto de ódio e desejos de vingança. Mas chegaram apenas onze à casa de seu pai. Angandyr ficou pelo caminho, meditando sobre a maneira de apoderar-se de Tirfing e vingar-se de Hialmar.
           Vagou pelos montes durante muito tempo, e, cansado enfim, com aquela caminhada, aproximou-se de umas pedras cobertas de musgo e deixou-se tombar sobre elas. Estava anoitecendo, e o jovem adormeceu.
           Acreditou ver, em sonhos, como que uma luz azul que iluminava o espaço. No meio daquela claridade, Angandyr percebeu os anões que dançavam em torno de um átrio enegrecido. Entre saltos e risos entoavam uma canção, em que diziam que apenas um guerreiro forte e valente, que fosse digno de tal coisa, conseguiria encontrar Tirfing, a espada envenenada.
       Quando a estranha visão se desvaneceu, Angandyr despertou e viu a seu lado uma espada. Apanhou-a, surpreendido. Era a Tirfing.
        Aproximava-se a data do combate em Samsé. Ingeborg tecia uma forte couraça de seda para Hialmar, mas um terrível pressentimento impedia-a de adiantar o trabalho. As agulhas caíam-lhe das mãos e a jovem chorava amargamente, porque, embora confiando no valor e na audácia de seu amado, tinha a certeza de que ele morreria em combate.
           Também Hialmar tinha esse pressentimento. Só a Orrar Oddur, que devia acompanhá-lo ao combate, confiara seus temores.
          Chegou o momento da partida, e os dois apaixonados, com o coração cheio de dor, despediram-se à beira do mar. Ingeborg entregou ao seu noivo um anel de ouro, como prenda de seu amor e de sua fé. Hialmar colocou o anel no dedo e ao ver o amor que lhe dedicava a princesa a quem adorava, sentiu renascer a confiança e a coragem para afrontar o perigo da espada envenenada de Angandyr. O pensamento de que era ela o prêmio para a sua façanha dissipou seus lúgubres pressentimentos.
      Orrar Oddur e Hialmar chegaram a Samsé e encontraram os doze irmãos. Onze deles precipitaram-se sobre Oddur. Hialmar lançou-se contra Angandyr.
          Enquanto Orrar se defendia do violento ataque dos onze irmãos, gritava a Hiovard que aquele não era procedimento digno de nobres. Que cada um deles viesse à luta por sua vez, e ele daria boa conta de todos. Assim o fizeram, e, um por um, caíram os onze aos golpes fortes da espada do Viking.

         Terminada a luta, Orrar voltou-se a procura de Hialmar. Angandyr jazia morto e Tirfing estava a seu lado, manchada com o sangue de Hialmar. Este continuava de pé, mas tinha no rosto a lividez da morte.
     Ao ver aproximar-se seu irmão de armas, Hialmar pareceu reunir as poucas forças que lhe restavam. Dezesseis feridas dilaceravam-lhe as carnes. O veneno de Tirfing ia penetrando em seu coração.
        Arrancou de seu dedo o anel que Ingeborg lhe dera ao despedir-se, e, entregando-o ao seu amigo, rogou-lhe que o devolvesse à sua amada dizendo-lhe que seu último pensamento tinha sido para ela.
        Orrar deu sepultura aos doze irmãos. Apanhou depois o amigo e depositou-o no fundo da embarcação.
        Dirigiu-se, muito triste, para Sigtune. Ao chegar, foi ver Ingeborg, que o recebeu ansiosamente. Entregou à princesa o anel de Hialmar, transmitindo-lhe, ao mesmo tempo, as derradeiras palavras do guerreiro, que tinham sido uma doce lembrança de amor para ela.

            A dor de Ingeborg foi imensa. Contemplou, absorta, o anel, e, de súbito, vendo as manchas de sangue que nele havia, teve a ideia de reunir-se a Hialmar. Aplicou, pois, os lábios ao sangue envenenado, e absorveu-o desesperadamente. O veneno deslizou pelas suas veias, chegando até o coração.
     Tirfing, ao matar Hialmar, tinha matado também Ingeborg.
         Orrar Oddur transladou os corpos dos dois enamorados e enterrou-os em Samsé. Conta o mito que pouco tempo depois nasciam junto à sepultura duas bétulas frondosas e esbeltas, tão aproximadas uma da outra, que seus ramos entrelaçavam-se, como os braços de dois apaixonados. E ainda se assegura que nas noites de ventania, as copas das árvores, ao balançarem, pronunciam docemente, os nomes de Hialmar e Ingeborg.

FIM

sábado, 17 de outubro de 2020

FOLCLORE JAPONÊS - A TECELÃ DE NUVENS

A TECELÃ DE NUVENS
FOLCLORE JAPONÊS

Há muito tempo atrás, em uma terra do sol nascente, morava um jovem agricultor, seu nome era Sei, e ele estava preparando suas terras para o plantio. Sei vivia sozinho e triste, pois a mãe, que era tecelã, havia falecido e ele fazia e não havia ninguém para ajudá-lo a cuidar de suas terras. Naquele dia, Sei estava semeando e, de repente, viu uma cobra rastejando no chão.

           

Sei percebeu que a cobra deslizava em direção a uma moita de crisântemos, onde havia uma aranha suspensa em um fio de sua teia. A aranha fez Sei lembrar de sua mãe - pequena e indefesa - e imediatamente levou a cobra para longe da aranha com seu ancinho. A aranha ficou surpresa com a bondade de Sei e olhou para ele, porém ele não percebeu, pois já havia voltado ao seu trabalho.

Passaram-se alguns dias e uma jovem bateu em sua porta. Ela se curvou e lhe perguntou se ele estava precisando de uma tecelã. Sei ficou surpreso pois realmente precisava, mas não havia comentado isso com ninguém e perguntou para a jovem:

- Como sabe que preciso de uma tecelã?

E a jovem respondeu tímida:

- Apenas sei. Ficarei muito contente se puder ajudá-lo.

Muito feliz e grato, Sei levou a jovem para o quarto de tecelagem de sua mãe. Enquanto a jovem tecia, Sei continuava seu trabalho no campo.

À noite quando Sei voltou para casa, bateu no quarto de tecelagem e perguntou:

- Terminou alguma obra?

A jovem abriu a porta revelando uma dúzia de belas peças de tecidos, suficiente para um kimono.

- Impossível, como pôde fazer tantas em tão pouco tempo? - perguntou Sei.

- Prometa-me que não vai nunca mais fazer essa pergunta e nunca entrará no quarto enquanto eu estiver trabalhando - respondeu a jovem.

- Prometo - respondeu Sei.

Dia após dia, Sei descobria que a jovem tecia peças cada vez mais bonitas e delicadas. Em um dia implorou à jovem:

- Por favor diga-me como consegue fazer essas peças tão belas.

A jovem apenas respondeu:

- Lembre-se de sua promessa.

Semanas depois a curiosidade de Sei venceu. Ao retornar à sua casa viu a janela do quarto de tecelagem aberta e pensou que não estaria quebrando a promessa se desse uma espiada. Quando olhou pela janela Sei quase desmaiou.


Diante do tear não havia uma jovem, e sim, uma enorme aranha de oito pernas. Sei olhou de novo pois era difícil acreditar. Lembrou-se da pequena aranha que havia ajudado e entendeu que essa era a sua recompensa.

Sei não sabia como expressar o tamanho da sua gratidão, ao mesmo tempo não queria que soubesse que tinha quebrado a promessa.

No dia seguinte, Sei partiu para uma aldeia distante em busca de algodão. Comprou e colocou o pacote em suas costas. Cansado do peso, Sei parou para descansar em uma pedra. Sei cochilou e não viu a mesma cobra que ele havia expulsado semanas atrás. A cobra o viu e não perdeu a chance, entrou no pacote de algodão.

Quando chegou em casa Sei entregou o pacote para a jovem. Ela se curvou agradecendo, sorriu e voltou para o quarto de tecelagem.


No quarto a jovem se transformou na aranha e começou a consumir o algodão, engolindo-o o mais rápido possível para que pudesse girar em fio de prata. Quando chegou ao final do pacote, inesperadamente, a cobra apareceu abrindo a boca.

Aterrorizada, a aranha saltou pela janela. Mas a cobra a alcançou.

Quando estava prestes a engoli-la, um raio de sol que atingia o punhado de algodão que saía pela boca da aranha, levantou-a e puxou para o céu.

Para mostrar sua gratidão, a aranha usou o algodão que havia engolido, não para tecer pano mas para tecer flocos de nuvens no céu.

Por isso, no japonês a palavra "kumo" significa nuvem e aranha. Embora os kanji sejam diferentes a pronuncia é a mesma.





 FIM

terça-feira, 6 de outubro de 2020

IRMÃOS GRIMM - OS DOZE CAÇADORES

                      OS DOZE CAÇADORES                                                      UM CONTO DE FADAS DOS IRMÃOS GRIMM

Há muito tempo atrás, aconteceu que um príncipe ficou noivo da filha do rei de um país vizinho. Eles se amavam muito e, quando festejavam o noivado, veio a notícia de que o pai dele estava muito mal. Então, despedindo-se apressadamente, o príncipe colocou um precioso anel no dedo da noiva e lhe disse:

- Este anel é para você não se esquecer de mim. Tenho que deixá-la agora, mas, assim que me tornar rei, virei buscá-la.

E, beijando-a, partiu. Chegando ao castelo do pai, encontrou-o já moribundo e seu pesar foi tão grande que nem se lembrou de comunicar-lhe o noivado.

- Filho querido, - disse o velho rei com voz muito fraca - dentro em breve partirei para a Grande Viagem. E só irei tranquilo se você me prometer casar-se com aquela que eu escolhi. E ele disse o nome de uma princesa de um distante reinado.

Não querendo contrariar o velho e querido pai em seus últimos instantes de vida, o príncipe respondeu:

- Sim, meu pai, Ela será minha esposa.

O velho rei morreu serenamente e, passado o período de luto, o príncipe tornou-se rei e foi obrigado a cumprir o prometido. Pediu em casamento a princesa escolhida pelo pai e foi aceite.

Quando a primeira noiva soube disso, quase morreu de desgosto. Seu pai, vendo-a tão abatida, disse:

- Filha, se o seu noivo não cumpriu a promessa que lhe fez, é porque não a merece.


 Não fique triste. Peça o que quiser que lhe darei.

E ela respondeu:

- Paizinho, será que podia me arranjar onze moças iguaizinhas a mim? Com a minha altura, o meu tipo?

- Nem que seja para revirar o mundo, você vai ter as suas moças - prometeu-lhe o pai. E, naquele mesmo dia, mandou procurar por todo o reino as onze moças que a filha queria.

Passou uma semana e elas estavam no palácio. Então a princesa mandou fazer doze costumes de caçador, todos iguaizinhos e, quando ficaram prontos, ela e as moças vestiram-se com eles. Depois despediu-se do pai, montou seu cavalo e, acompanhada das moças, dirigiu-se para o reino de seu ex-noiva, a quem continuava amando. Chegando lá, apresentou-se ao rei e perguntou-lhe se não estava precisando de caçadores e se não queria tomar a seu serviço todos eles juntos. O rei não a reconheceu, mas gostou daquela turma de rapazes jovens e bonitos. E, desde esse dia, eles se tornaram os doze caçadores do rei. 

Contudo, o rei tinha um leão que o acompanhava por toda a parte, um animal maravilhoso que sabia falar e adivinhava as coisas mais secretas e ocultas. Uma noite, estando os dois conversando, o leão disse:

- Então você imagina que tem doze caçadores...

- Imagino não! Eu tenho - corrigiu o rei. - Seria mais exato dizer "doze caçadoras" - retrucou o leão.

- Por que diz isso?

- Por que são doze moças.

- Não é possível! - e o rei exigiu que ele provasse o que dizia.

- Isso é fácil! Mande espalhar ervilhas na sua ante-sala, chame os caçadores e verá. Homens têm o passo firme. Quando pisam sobre ervilhas, elas não saem do lugar. Mulheres... Bah! Vai ver só como tropeçam, escorregam e espalham ervilhas para todos os lados.

O rei gostou do conselho e assim fez. Aconteceu que o camareiro real ouviu a conversa e, como simpatizava com os caçadores, assim que pôde, foi procurá-los e contou-lhes tudo. A princesa agradeceu-lhe e, depois que ele saiu, ordenou às companheiras:

- Amanhã vocês têm que se controlar e pisar firme sobre as ervilhas. Nem uma só pode rolar. 

No outro dia, quando foram chamados pelo rei, os caçadores entraram na antessala pisando as ervilhas com tanta firmeza que nem uma só rolou. Depois que se retiraram, o rei chamou o leão e disse:

- Desta vez você se enganou. Meus caçadores pisam como homens!

- É porque elas souberam que iam ser postas à prova e se prepararam - respondeu o leão. - Mande trazer doze rocas para a sua antessala e vai ver o que acontece. Quando passarem por elas, mulheres que são, vão se deter e se alegrar. Homens não fazem isso.

O rei concordou. Porém, o camareiro real, também desta vez, escutou a conversa e foi prevenir os caçadores.

Quando ficaram a sós, a princesa recomendou às companheiras:

- Cuidado! Vocês têm que passar pelas rocas sem olhar para elas!

              

No dia seguinte, atendendo ao chamado do rei, elas atravessaram a antessala sem dirigir sequer um olhar para as rocas. Depois que saíram, o rei disse ao leão:

- Viu? Eles nem repararam nas rocas!

          - Claro! Elas vieram prevenidas! Experimente... - Não vou experimentar mais nada! E pare de se referir aos meus caçadores como "elas

O leão retirou-se com um ar ofendido e o assunto foi esquecido. O rei continuou com suas caçadas, sempre com seu grupo de rapazes, cada vez gostando mais deles e, entre todos, o seu preferido era a princesa. Um dia, durante uma caçada, vieram avisar que a noiva oficial estava a caminho. Ao ouvir isso, a princesa ficou tão magoada que desmaiou. O rei correu em sua ajuda e, querendo reanimá-la, tirou-lhe a luva. Então viu o anel que lhe havia dado e, observando seu rosto, reconheceu-a. Quando ela abriu os olhos, beijou-a, dizendo:

- Nós nos pertencemos um ao outro. Nada no mundo mudará isso!

E ela respondeu baixinho, aninhando-se nos braços dele.

- Entre doze caçadores semelhantes, você me preferiu e agora sabe porquê...

        E o rei mandou uma mensagem à outra noiva, pedindo-lhe que voltasse para o seu reino, pois ele encontrara a esposa que havia perdido. Dias depois o casamento realizou-se com uma linda festa e, mais feliz que os noivos, estava o leão. Seu dom de adivinhar, mais do que nunca, foi reconhecido e valorizado e ele era agora o conselheiro do rei.

FIM


domingo, 4 de outubro de 2020

LUIGI PIRANDELLO - O CORVO DE MIZZARO

O CORVO DE MIZZARO

LUIGI PIRANDELLO

Certos pastores desocupados, galgando um dia as montanhas de Mizzaro, surpreenderam, no ninho, um enorme corvo que estava chocando os ovos, pacificamente...
       — Ó basbaque, que fazes aí? Vejam só: chocando os ovos! Isso é serviço de tua mulher, basbaque!
      Não é de crer que o corvo deixasse de dar as suas razões; deu-as, e numa linguagem de corvo, gritando. Contudo, ninguém o ouviu. Os tais pastores levaram o dia inteiro torturando-o com as suas pilhérias, até que um deles resolveu levá-lo consigo para a aldeia. Mas no dia seguinte, não sabendo o que fazer deste corvo enorme, dependurou-lhe, como lembrança, um guizo de bronze ao colo e o libertou de novo:
           — Goza!

Só mesmo o corvo é que poderá saber a impressão que lhe causou aquele guizo sonoro, porque o arrastou consigo para o céu. Vendo-o voar, voar amplamente, cada vez mais alto, dir-se-ia que ele estivesse satisfeito, já agora esquecido do ninho e da mulher.
          — Dim dimdim, dim dimdim...
       Os camponeses que trabalhavam debruçados sobre a terra, ouviam aqueles guizos e erguiam o pescoço; olhavam aqui, ali, pela planície imensa que se estendia sob o incêndio do sol:
          — Que é que está tocando? De onde vem esse som?
Mas se não havia vento, de que igreja distante podia chegar até eles esse bimbalhar festivo?
          Supunham tudo menos que fosse um corvo no azul do céu.
        — Espíritos! — pensou Ciché, que trabalhava sozinho numa herdade, atento a desencavar conchas em torno de alguns frutos de amendoeira, a fim de enchê-las de estrume. E fez-se o sinal da cruz. Porque ele acreditava piamente na existência de espíritos. Fizera experiências em outras ocasiões. E até ao voltar, certa noite, do campo, pela estrada que margeia as Fornaci extintas, que era onde eles moravam, no dizer de todos, ouviu que o chamavam. — Ciché! Ciché! E sentiu que os cabelos se eriçavam sob o boné.
         Aquele bimbalhar ele o ouvira a princípio, à distância, depois mais perto, e depois novamente à distância. Em redor não havia viva alma: campo, árvores e plantas, que não falavam, sentiam, que com a sua impassibilidade tinham aumentado o seu espanto. À hora da merenda, que consistia num pedaço de pão e numa cebola, que trouxera de casa e que deixara dependurada numa sacola, perto dele, junto com o paletó, a uma árvore de oliveira, não encontrou a cebola; encontrou apenas o pedaço de pão. E foi assim durante três dias em seguida.
         Não disse nada a ninguém, porque sabia que quando os Espíritos começam a atormentar uma pessoa, ai de quem se lamente! Fazem pior.
          — Não me sinto bem — respondia Ciché, ao voltar de tarde para casa, à mulher que lhe perguntava a razão daquele seu aspecto transtornado.




— Mas, ao menos, coma! — observava-lhe a companheira, vendo que ele engolia duas ou três colheradas de sopa, uma após outra.
        — Sim, como! — Mastigava Ciché, em jejum desde a manhã e com ódio por não poder abrir-se com a esposa.
Até que por todo o campo se espalhou a notícia daquele corvo ladrão que andava tocando o guizo pelo céu.
         Ciché teve a desdita de não rir do caso como os demais camponeses, que também andavam com apreensões.
        — Prometo e juro — disse ele — que me pagará caro a brincadeira!
        E que fez? Trouxe na sacola, junto com o pedaço de pão e a cebola, quatro favas secas e quatro costuradas a barbante. Assim que chegou à herdade, tirou selim ao asno e o soltou pelo campo, livremente. Ciché falava com o asno como se fala com um cristão; e o asno, ora erguendo esta, ora erguendo aquela outra orelha, de quando em quando rugia, como se lhe respondesse a seu modo.
        — Vá, Chico, vá — disse-lhe nesse dia Ciché. — E esteja atento, porque nos divertiremos!
Furou as favas; amarrou as quatro costuradas a barbante no selim, e as colocou em terra sobre a sacola. Depois afastou-se para começar a trabalhar.

        Passou uma hora; passaram duas. De quando em quando, julgando ouvir o som da campainha pelo ar ele erguia o corpo e aprumava as orelhas. Nada. E continuava de movo a carpir.
           Chegou a hora da ceia. Perplexo, sem saber se havia de ir logo ao pão ou esperar ainda um pouco, Ciché por fim se decidiu; vendo, porém, tão bem preparada a cilada, resolveu não mexer nela. Nisto, ouviu claramente um tinido distante. Ergueu a cabeça:
           — Ei-lo!
        E quieto e inclinado, com o coração que lhe pulsava violentamente, deixou o lugar e se escondeu ao longe.
         Mas o corvo, como se se estivesse deliciando com o som da campainha, voava, voava, revoava, sempre no alto, cada vez mais alto e não tratava de descer.
         — Desconfio que me está vendo — pensou Ciché; e ergueu-se para ir esconder-se mais longe.
           O corvo continuou voando sem dar demonstrações de que pretendia descer. Ciché estava com fome, mas mesmo assim não queria dar-se por vencido. Pôs-se de novo a carpir. Espera, espera, e o corvo sempre no alto, como se estivesse fazendo de propósito. Esfomeado, com o pão a dois passos dali, meus senhores, e sem poder pegá-lo! Ciché remoia-se todo por dentro, mas resistia, indignado, obstinado.
          — Hás de descer! hás de descer! Também tu hás de ter fome!


O corvo, entretanto, do alto do céu, com o som da campainha, parecia que lhe respondia irônico:
          — Nem tu nem eu! Nem tu nem eu!
          Passou-se assim o dia. Ciché, exasperado, desafogou--se com o asno, tornando a meter-lhe o selim, de que pendiam, como um adorno de novo gênero, as quatro favas. E enquanto caminhava, mordeu indignado aquele pão, que fora o seu suplício o dia inteiro. A cada mordida, soltava um palavrão para o corvo: — carrasco, ladrão, traidor... — porque não se deixara prender na cilada.
          Mas no dia seguinte tudo correu bem.
      Armada a cilada das favas com o mesmo cuidado, pusera-se a trabalhar quando ouviu um bimbalhar convulso ali perto e um grasnar desesperado, entre um furioso sacudir de asas. Foi ver o que era. O corvo estava ali, preso pelo barbante que lhe saía do bico e o estrangulara.
         — Ah, caíste? — gritou-lhe ele, aferrando-o pelas asas enormes. — É boa a fava? Agora é a minha vez, besta feroz! Vais ver.
      Cortou o barbante e, para começar, aplicou dois piparotes na cabeça do corvo.
         — Este pelo medo e este pelo jejum!
      O asno que não estava muito disposto a arrancar as ervas do caminho, ouvindo grasnar o corvo saiu correndo, em disparada, assustado. Ciché fê-lo parar com um grito e de longe lhe mostrou a besta negra:


— Ei-lo aqui, Chico! Prendemo-lo! Amarrou-o pelos pés, dependurou-o na árvore e voltou ao trabalho. Enquanto carpia, pôs-se a pensar na desforra. Ter-lhe-ia cortado as asas, para que não pudesse nunca mais voar; depois o entregaria aos filhos e as crianças da vizinhança para que se divertissem à custa dele. E ria, ria, entre dentes.
        Ao anoitecer, colocou o selim no asno, desamarrou o corvo e prendeu-o pelos pés ao rabicho do asno; cavalgou e se pôs a caminho de casa. A campainha amarrada ao pescoço do corvo, começou a tilintar. O asno eriçou as orelhas e se pôs em pé.
        — Vamos! — gritou-lhe Ciché, dando um soco na cabeça do animal.
      E o asno se pôs de novo a caminho, não muito conformado com aquele som insólito que acompanhara o seu lento trotear sobre a poeira da estrada.
       Ciché começou a pensar que desse dia em diante ninguém mais havia de ouvir bimbalhar no céu o corvo de Mizzaro. Tinha-o ali e não dava mais sinal de vida.
           — Que fazes? — lhe perguntou, virando-se e dando-lhe uma chicotada. — Estás dormindo?
             O corvo, em resposta ao látego:
             — Cráh!
          Diante dessa voz inesperada, o asno estacou de golpe, com as orelhas estendidas. Ciché explodiu numa risada.
          — Vamos, Chico! De que te assustas?
         E com a corda bateu na orelha do asno. Pouco depois, de novo, repetiu a pergunta ao corvo:
          — Adormeceste?
        E uma chicotada mais forte. E o corvo, por sua vez, mais forte ainda:
           — Cráh!
       Mas desta vez o asno deu um salto e saiu em disparada. Em vão Ciché, com toda a força dos braços e das pernas, procurou detê-lo. O corvo, sacudido naquela corrida desenfreada, começou a grasnar como um desesperado: e quanto mais grasnava tanto mais o asno corria, espantado.

— Cráh! Cráh! Cráh!
        Ciché gritava, por sua vez, puxava a rédea, puxava, mas já agora as duas bestas pareciam enfurecidas pelo espanto que se incutiam mutuamente, uma grasnando e a outra fugindo. Ecoou, durante certo tempo, dentro da noite, a fúria daquela corrida desenfreada; ouviu-se depois um formidável tombo, e mais nada.
          No dia seguinte. Ciché foi encontrado, no fundo de um barranco, esfacelado, sob o asno também esfacelado: uma carniça que fumegava sob o sol, entre nuvens de moscas.
          O corvo de Mizzaro, negro no azul da formosa manhã, soava de novo pelos céus a sua campainha, livre e feliz.

NOTA: Publicado originalmente no suplemento literário de "A Noite", edição de 1930. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016).