sábado, 25 de junho de 2016

LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO - E POR FALAR EM LADRÃO DE GALINHAS...

E POR FALAR EM LADRÃO DE GALINHAS...

Luís Fernando Veríssimo
"Os canas pegaram o cara em flagrante roubando galinhas de um galinheiro e levaram para a delegacia.
- Que vida mansa, heim!, vagabundo? Roubando galinha para ter o que comer sem precisar trabalhar. Vai pro xilindró! Gritou o delegado.
- Mas não era para eu comer não, não. Era para vender.
- Pior. Venda de produto roubado. Concorrência desleal com o comércio estabelecido. Sem vergonha! Repetiu a autoridade.
- Mas eu vendia mais caro, eu não concorria não.
- Mais caro? Como assim...
- Espalhei o boato que as galinhas de galinheiro eram bichadas e as minhas não. E que as do galinheiro botavam ovos brancos enquanto as minhas botavam ovos marrons, caipira legítimo.
- Mas eram as mesmas galinhas, safado.
- Os ovos das minhas eu pintava.
- Que grande pilantra... 171. Estelionatário refinado.
Nessa altura da conversa já havia um certo respeito no tom do delegado.
- Ainda bem que tu vais preso. Se o dono do galinheiro te pega...
- Já me pegou. Mas fiz um acerto com ele. Me comprometi a não espalhar mais boato sobre as galinhas dele, e ele se comprometeu a aumentar os preços dos produtos dele para ficarem iguais aos meus. Aí convidamos outros donos de galinheiro a entrar no nosso esquema. Formamos um oligopólio. Ou melhor, um ovigopólio.
- E o que você faz com o lucro do seu negócio?
- Especulo com dólar, na bolsa... Invisto alguma coisa no tráfico de drogas. Comprei alguns deputados. Dois ou três ministros, juiz. Consegui exclusividade no suprimento de galinhas e ovos para programas de alimentação do Governo e superfaturo os preços.
O delegado mandou vir um cafezinho para o preso e perguntou-lhe se a cadeira estava confortável, se ele não queria uma almofada. Depois perguntou:
- Doutor, não me leve a mal, mas com tudo isso, o senhor não está milionário?
- Milionário ? Não. Trilionário. Sem contar o que eu sonego de Imposto de Renda e o que tenho depositado ilegalmente no exterior.
- E, com tudo isso, o Doutor continua roubando galinhas?
- Às vezes. Sabe como é...
- Não sei não, Excelência. Me explique melhor.
- É que, em todas essas minhas atividades, eu sinto falta de uma coisa. Do risco, entende? Daquela sensação de perigo, de estar fazendo uma coisa proibida, da iminência do castigo. Só roubando galinhas eu me sinto realmente um ladrão, e isso é excitante. Como agora. Fui preso, finalmente. Vou para a cadeia. É uma experiência nova!
- O que é isso, Excelência? O senhor não vai ser preso não.
- Mas fui preso em flagrante delito, pulando a cerca do galinheiro!

- Sim. Mas és primário, e com esses antecedentes... É a Lei Fleuri...

RUBEM BRAGA - RECADO AO SR. 903

Recado ao Sr.  903
de Rubem Braga
"Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador do prédio, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal - devia ser meia-noite - e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a lei e a polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a leste pelo 1005, a oeste pelo 1001, ao sul pelo Oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão, ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada, e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas - e prometo silêncio.
Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: "Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou". E o outro respondesse: "Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela".
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz."